2007/11/29

O Andarilho & Futuro Fantasma do Canto dos Araçás

Sem nada muito importante para fazer numa noite primaveral no Canto dos Araçás – Florianópolis – assisti a um programa cheio de bobagens sobre fantasmas na televisão. O apresentador canadense tentava nos convencer de que há diferentes explicações plausíveis para o que muita gente jura ver em cemitérios, ruas mal iluminadas, quartos escuros e, muito mais frequentemente, em casas com mais de um século de existência e arquitetura gótica.

Gostei de uma explicação, embora me irritasse o tom pseudo-acadêmico do sujeito procurando dar mais credibilidade ao que dizia: fantasmas seriam imagens de situações rotineiras ou de grande carga emocional ou ainda “energética”, como assassinatos brutais, que teriam sido gravadas no espaço-tempo e que de tempos em tempos “tocariam” novamente por causa de alguma combinação de fatores ambientais ou paranormais. Imaginei o universo como uma grande fita-cassete velha, daquelas que ao serem tocadas te fazem escutar não só o que você gravou em cima, mas também traços do que estava gravado antes e algo do que está no outro lado da fita também.

O Canto dos Araçás é exatamente isso: um canto cheio de araçás, cercado por morros cobertos pela mata atlântica e pela Lagoa da Conceição, de modo que todos têm que quase que necessariamente passar pelos mesmos lugares e tomar o mesmo caminho para sair ou chegar nele. E em praticamente todas essas vezes que chego ou saio de lá, cruzo com Seu Cristóvão, que certamente está garantindo sua futura aparição como fantasma oficial da região.

Ele deve ter mais de 90 anos, é magro, pequeno e com barbas cinzentas, sempre com roupas encardidas e rasgadas, os pés descalços e um chapéu enfiado na cabeça. Invariavelmente o vejo caminhando ao longo do canto da estrada em passos vagarosos, mas decididos, sempre com gravetos e paus nas mãos para alimentar algum fogão à lenha, real ou não, para fazer seu café ou pajelança. E independente da hora e direção para qual se dirige, ele sempre está em algum ponto da estrada. Passa a maior parte de seu dia andando, o que me faz lembrar de Thoreau, que explicou como a pessoa que passa o dia caminhando precisa de muito pouca coisa para ser feliz.

Certa manhã dei carona a um morador antigo, que me contou que Seu Cristóvão vem fazendo isso há pelo menos 30 anos. Antigamente, a água fresca das cachoeiras corria paralelamente à estrada, e o andarilho dos Araçás também carregava uma pequena garrafa para se servir dela em sua via crucis diária.

Cheguei a me perguntar se Cristóvão já não seria um fantasma àquele ponto, e ao encontra-lo numa de minhas caminhadas, cheguei bem perto para dizer bom-dia, ao que ele me respondeu prontamente, sem muita emoção ou tempo a perder.

Levando o documentário a sério, é certo que depois de sua partida, os traços da rotina repetitiva do ancião serão percebidos por moradores e visitantes quando as condições forem ideais, seja visualmente ou através de algum outro sentido oculto que possamos ter.

Uma coisa é certa: Seu Cristóvão está em perfeita forma física e mental, numa jornada que se justifica por si só e me faz pensar em manter a tevê desligada por um bom tempo.

2007/11/27

Textos das anta parte 5.

Chilton: apetite por destruição.


17.SET.1999

ALEX CHILTON - UM HOMEM CHAMADO DESTRUIÇÃO
Nas últimas semanas de fevereiro enquanto procurava bons shows no jornal eu passava os olhos pelo nome Alex Chilton. Estudei algumas vezes a idéia de checá-lo ao vivo, mas sempre acabava desistindo, ou porque o show seria em New Jersey e sold out, ou porque havia sempre outra coisa para ver no mesmo horário e mais perto de casa. Além disso o caboclo (eu) acaba inconscientemente assimilando as besteiras que a imprensa local fala sobre o show desse homem, sobre como o cara vive às custas do passado e bla bla bla, como se esse tipo de coisa realmente me preocupasse. Até o dia em que decidi ouví-lo no Coney Island High, em Manhattan.
Chilton é ovelha negra da música pop. Depois de emplacar alguns hits nos anos 60 com os Box Tops (há quem traçasse paralelos entre eles e os Monkees no quesito armacões legais), o então garoto de Memphis formou uma das mais influentes e injustiçadas bandas dos 70, o Big Star. Ao lado de Chris Bell, que posteriormente lançaria o solo seminal I am the Cosmos, Chilton produziu uma pérola que ecoou nos discos do R.E.M., Teenage Fanclub e uma cambada de outros. Estou falando do #1 Record, a estréia do Big Star, de 72.
Naquele ano, a fórmula do blues pesado havia sido canonizada pelo Led Zeppelin assim como o Black Sabbath mostrava ao mundo como chacoalhar a cabeleira com os mesmos riffs do delta, mais o suingue do demo. Lynyrd Skynyrd emplacava, os Stones ditavam o rock'n'roll espartano e um punhado de garotos dos dois lados do atlântico tentavam repetir os feitos de Rod Sewart e os Faces. Não havia lugar para uma banda tão ligada nas melodias dos anos 60 (no britpop original a la Beatles, Kinks, etc). Aliás, nem mesmo os ingleses queriam mais soar ingleses. O som da America, direto e tosco, enchia os charts e os bolsos dos figurões de gravadoras.
O Big Star pode ter inaugurado o power pop, músicas ricas em melodia tocadas com toda a força daquela era, mas isso infelizmente aconteceu sem o apoio do público. Para piorar, haviam assinado com a Ardent, uma subdivisão da Stax, o selo máximo da soul music, que não sabia como lidar e distribuir uma banda de rock. Logo depois Chris Bell abandona o barco, Chilton lança no ano seguinte Radio City, e grava Sister Lovers, que só viria a ser lançado em 78, ano em que se rendeu ao baixo astral acompanhado de muita birita e um par de seringas.
No mesmo ano, Bell morreria deprimido, em um acidente de carro. E apesar do apoio da crítica, a personalidade temperamental de Chilton manteria seu legado longe da consagracão por mais algum tempo. Na década de 80, Chilton lança alguns discos esquisitos sem o Big Star, como"Like Flies on Sherbert, onde detona o country, avacalha o rockabilly, e sem querer, inaugura a adoracão por sua personalidade caótica: Os Replacements colocam o vinil no topo de sua coleção. De repente Chilton se vê cercado por admiradores, os discos do Big Star são procurados por todos os cantos e quando achados valem até 100 dólares a peça. O R.E.M. cita a banda como influência essencial. O R.E.M. alcança a fama. Bam! Chilton acaba na boca do povo.
Alex Chilton vira lenda cult na Grã Bretanha quando o Teenage Fanclub revela sua fonte de inspiração. De repente todo mundo que prestava estava falando do cara, de Bob Gillespie a Joey Ramone. Chilton se limpa, reúne o Big Star, recrutando alguns dos Posies, e lança um excelente álbum ao vivo.
Todos achavam que a partir dali começaria sua redencão. Se quisesse, isso teria acontecido, mas o sujeito que trocou uma batida de bateria da música Downs (Sister Lovers) por o som de uma bola de basquete pulando só para frustrar as tentativas da gravadora de torná-la um hit não parece se preocupar. Aos invés de lançar o álbum com o qual todos sonhavam, ele grava Cliches com uma banda de bar, jazzinhos bem vagabundos que não fazem jus à sua genialidade. E olhe só o nome de seu album de 96: A Man Called Destruction.
O SHOWEu estava desconfiado que Chilton poderia fazer de tudo para afastar o hype de seu caminho, entrei no clube já esperando um set irregular, com poucas músicas do Big Star. Pensei: se ele tocar Down the street e Thirteen, já valeu. Adolescentes fãs do Nada Surf se misturavam entre o pessoal de 30 e poucos anos genuinamente interessados. Afinal, quem é esse sujeito de quem tanto falam por aí?
O set de Chilton não deu as pérolas aos porcos e isso não fez a mínima diferença. Sua maestria na guitarra foi o tempero, uma Gretsch antiga que apitava o tempo inteiro. O estilo inconfundivel de Chilton estava lá em sua releitura do clássico dos Box Tops The Letter ( é ele se preparando para a volta da banda). O baixista parecia meu tio-avô e provavelmente estava meio inseguro porque "meu Deus, toda aquela gente ali na sua frente, deveríamos ter ensaiado mais Alex", imaginei ouví-lo.
É claro que não faltaram os jazzinhos vagabundos, nem as country ballads, nem nada. É que isso não foi o suficiente para tirar o sorriso do meu e de todos os rostos presentes. Isso tambem não aconteceu quando a negatividade que cerca Chilton se evidenciava nos detalhes, como no junkie que começou a pogar acertando bordoadas no pessoal que estava mais perto do palco, ou no seu amplificador que queimou e teve que ser substituído pelo do guitarrista do Nada Surf.
E a única música do Big Star só foi aparecer no bis: Down the Street, que está na abertura do seriado That 70s Show, uma comediazinha ambientada nos anos 70 que está fazendo um certo sucesso por aqui. No final, com um rosto contorcido pela felicidade e os olhos que só os índios velhos que perderam suas terras para o homem branco mas não a tal da dignidade têm, Chilton conversou com os fãs, fez piadinhas e foi embora. Que gente fina.

Textos das anta parte 4.

Sexta feira 13 na ilha onde todos nós ficamos bêbados (texto de 1999)

Manhattan: ilha onde todos nos ficamos bêbados, na língua dos índios nativos do delta do Rio Hudson.

O Mercury Rev estava em NYC para lancar seu ultimo CD, Deserter’s Songs, um trabalho bem diferente de tudo que havia feito até agora. Continuam as eventuais explosões sonoras pinkfloydescas, mas o negócio agora é um pouco mais melancólico, um pouco menos anfetamina. Um amigo meu achou o disco parecido com Enya, o desgraçado. Discordo: para mim, a única coisa que me lembra (e mesmo assim vagamente) é Syd Barrett.

Para um punhado de pessoas, o Mercury Rev é uma banda especial, que mora se não no coração, pelo menos nas terminações nervosas mais sujeitas a catástrofes sensoriais. São os porta-vozes daquilo que uns engraçadinhos da imprensa chamaram de freak rock, o rock lisérgico dos anos 90, promovido também pelo Butthole Surfers, Flaming Lips, Verve em seus primeiros momentos e sei lá mais quem.

Pela familiaridade com o grupo, estava excitado ao entrar no Bowery Ballroom. Minha companhia era o Cleverson Oliveira, artista residente em NY que está nesse momento expondo em Curitiba. Nós dois passamos alguns dias em Itapoá, Santa Catarina, com um CD do Mercury Rev, um violão e mais nada. Então, o show era um troço pessoal, tipo casamento do seu melhor amigo, que não dá para perder, nem que seja só pelos salgadinhos.

Bem, entramos cedo e havia duas bandas tocando antes do show, desinteressantes pelo que me lembro. Então sentamos no bar, que fica no andar inferior, bem debaixo do palco, e enchemos a cara sem dar uma moedinha de gorjeta para o atendente, uma heresia por aqui. O lugar estava cheio. O show do MR era o ápice do maior festival de musica alternativa do mundo: o CMJ Festival. Você pagava 370 dólares e via mais de 80 shows usando o seu crachá. Nós preferimos pagar apenas pelos shows que iríamos assistir: você sabe, a grana estava curta e tínhamos alugueis atrasados para pagar.

Uma hora depois, as bandas de abertura pararam com o barulho. - Acho que está na hora, irmão – disse, entre goles de Guiness. Mas assim que nos dirigíamos até a área dos shows, o barman começou a gritar, avisando que todos deviam sair lá de dentro antes do show para que o lugar fosse preparado. A coisa iria ser quente. Havia esse pessoal de gravadora colando cartazes do Mercury Rev e outros badulaques nas paredes: eles queriam causar boa impressão no publico. Coisa de gringo.

Bem, nós não estávamos a fim de sair dali, por isso achamos uma mesa no mezanino, que ficava a poucos metros do palco, lugar privilegiado para se assistir um show. Nos fingimos de mortos e preparamos um plano de emergência, se por acaso algum segurança passasse por ali para nos expulsar de lá de dentro. Nós estaríamos preparados.

Cinco minutos depois, assistíamos o pessoal da gravadora, nerds do rock do tipo eu-sei-fazer-de-tudo-menos-tocar, enfeitando o local enquanto enchíamos a cara com Margaritas gigantescas. Nosso plano era simples e só serviria para que não fossemos enxotados dali na porrada. A chance de testá-lo logo apareceu, na forma de um negão de 5 metros por 3. - Caras, vocês tem que sair do bar imediatamente.

- Le escargot c’est un table! - bradou Cleverson. O plano era se passar por francês que não fala inglês. Isso livraria nossas caras de bofetadas afro-americanas.

- OK senhor, eu entender, OK, esperar um pouco - disse, fazendo o papel do que sabia um pouco a língua local.

- Oui messieur, Le croissant avec la francaise de la marseille - Cleverson estava exagerando.

- Olha meu - Disse o segurança - eu não sei que goddamned língua seu amigo está falando, mas diga para ele que se vocês não saírem daqui já, vou ter que chutar vocês para fora.

- Beleza, meu, só espera eu fazer xixi no banheira, oui?

- Tudo bem, mas seu amigo espera aqui.

Quando saí do banheiro, o segurança me esperava na porta de saída.

- Seu amigo está te esperando lá fora.

De fato, Cleverson estava lá fora, mas havia mudado de cor. Vermelho meio azulado. O segurança o havia jogado para fora depois que ele soltou alguma baboseira pseudo-francesa em sua cara. Já havia uma fila de reentrada que dava a volta na quadra. Então como bons brasileiros (amiguinhos, não se acanhem com os politicamente corretos que dizem o contrário: o bom de ser brasileiro é que ainda podemos e devemos contar com o jeitinho brasileiro, nossa única arma contra o império azul-avermelhado), furamos a fila por insistência de um vizinho afro do Cleverson que estava no comecinho dela.

Os seguranças abriram a porteira e fomos os primeiros daquela grande serpente humana a apresentar os ingressos, talvez uns dos poucos com ingressos, já que americano adora crachá.

- Vocês não podem entrar com estes. Já estão usados. É claro que estavam usados. Mas como iríamos saber que havíamos entrado cedo demais e que os shows que achamos serem de abertura eram, na verdade, outro evento separado? E o pior, nem estávamos interessados naquelas outras bandas. Você pode perguntar para o barman, seu segurança, não saímos do bar nem por um segundo, porque estávamos esperando o Mercury Rev. Os trogloditas nem queriam ouvir.

Depois de insistir muito e falar com o gerente, desistimos. Um dos caras foi até que gente fina e me deu o numero do dono do bar para fazer uma reclamação e pelo menos recolher nosso dinheiro. Vamos embora, Cleverson. Cleverson?

Meu amigo estava roxo, com o olhar fixo no segurança que o havia empurrado para fora do bar.

- Eu vou pegar esse cara!

- Tá louco? Olhe o tamanho do sujeito!

- Vou cuspir na cara dele e sair correndo. Ele nunca vai me pegar, um cara desse tamanho não consegue correr nem meia quadra...

Tentei convencê-lo a esquecer tudo isso, mas naquele ponto a raiva já o havia tomado. Para piorar tudo, o Mercury Rev começou a tocar e nós podíamos ouvir a trupe perfeitamente dali, às vezes até vê-lo no palco quando alguém do staff abria uma certa porta à nossa frente. Foi como estar morrendo de fome e olhar para um prato de gostosuras na vitrine do lugar no qual você não pode entrar.
- Bem, cara, se você quer apanhar, vá em frente, mas me deixe fora disso. Tchau!

Fui embora.

Duas quadras depois aparece no meu lado esquerdo um Cleverson suado e com as pernas bambas depois de uma corrida de quarteirões. Meu amigo havia cuspido na cara do segurança e fugido como uma lebre. De fato, os seguranças eram grandes demais para conseguir agarrá-lo, ele mesmo uma espécie de atleta urbano.

Eu estava com o walkman ligado e não entendi o que Cleverson tentava me dizer. Nem queria saber, só estava preocupado com a represália que poderia vir a qualquer momento - disse diversas vezes que tinha a impressão de estarmos sendo seguidos. E não poderia pedir nossa grana de volta.

Viramos numa esquina. Foi muito rápido. Senti um boeing me agarrando pelo pescoço e jogando meus ossos contra uma grade ao lado. Pensei que era o negão. Quando tirei meu capuz de inverno vi quem era: o segurança que havia tentado nos ajudar. Ao perceber que pegara o cara errado, pediu desculpas. Não deu nem tempo dele ouvir a resposta. Nesse exato momento, Cléverson começou a arremessar garrafas quebradas do chão no brutamontes enquanto o desafiava verbalmente. O segurança, mais por bom mocismo do que por medo, pediu para que eu segurasse meu amigo louco e foi embora, depois de levar uns chutes na bunda. E olhe que o cara era gigantesco. A raiva às vezes faz com que cresçamos alguns centímetros.

Que bad trip! Sem show do Mercury Rev, agredido por um segurança por causa de meu amigo e sem grana no bolso. Para evitar mais baixo astral, fomos até um bar nas redondezas, onde uma amiga é bartender e daí poderíamos beber de graça e sossegados.

Sentamos num canto com as cabeças baixas, abrindo a boca depois de quinze minutos de silencio forçado. Culpei o cara por tudo aquilo, mas certamente a culpa maior tinha sido da gerência do Bowery Ballroom, incapaz de deixar claro o que iria acontecer com quem não tivesse crachá e entrasse muito cedo. Tudo bem. Aquela era uma sexta feira 13 e nós éramos dois jovens celtas tupiniquins supersticiosos. O negócio era esperar aquela noite passar, de preferência com a cabeça chafurdada.

Kika nos deu algumas cervejas na faixa. Secamos as garrafinhas em questão de segundos. Estávamos quase apaziguados da noite dura, até começamos a contar piadas um para o outro, as mais sem graça possível.

Falamos um pouco mal de Curitiba e coisa e tal, quando percebemos um sujeito de óculos fundo de garrafa e cara de serial killer sentado do outro lado do bar, nos encarando. Ele se dirigiu a mim e se apresentou:

- Olá, eu conheço vocês, bem, é...o meu nome é Joshua, Joshua Moses, e eu sou fã de vocês, sabe? e...

- Cuma?

- É, afinal, vocês são aqueles caras que fazem aquelas festas sensacionais, não é? Aquelas, as famosas festas, as mais quentes de NYC, não é?

Eu e meu amigo nos entreolhamos e entendemos exatamente o que fazer. Afinal, depois de uma noite como aquela, nada melhor para esquecer a porcaria do que uma boa pagada de sapo.

- Ah...claro, claro!

- Sim, vocês são os caras de Wyoming que fazem raves com ecstasy de graça, não é?

- Oh sim, de graça, com certeza, só, é isso aí, senta aí, camarada, que tal pagar umas cervejas para a gente? Podemos até dar uns autógrafos e tal...

Joshua Moses sentou e pediu as cervejas mais caras da casa. Nada mal.

- Diga lá, Joshua Moses, esse nome é de profeta, não é mesmo? - perguntei, enquanto ia preparando alguma asneira na cabeça.

- Ah, sim, de certa forma, estou lutando para me tornar um profeta...

- É mesmo é? Bem, então tenho que te dizer algo. Nós, sabe, eu e meu chapa Cleverson aqui, nós somos profetas. Nos temos três mil anos e fazemos parte de uma sociedade internacional de profetas, profetas de montanha, se é que você me entende...

O cara mudou a expressão facial de bobo-interessado para bobo-louco doentio.

- Ah, é? Profetas, é?

Levantou-se e começou a esticar o nariz em cima de mim e de meu amigo, se aproximando com seu narigão o máximo possível de nossas caras e queixos.

- Qual é a sua, cara? Nós não somos gays...

- Não, não é isso! Vocês não são profetas coisa nenhuma.

- E o que te levou a chegar a uma conclusão tão absurda ?

- Se fossem, teriam me repelido com sua energia. Mas, ao invés disso, deixaram que eu ultrapassasse o seu campo de força...

- Olhe, cara, isso não tem nada a ver. Nós, como profetas, sabemos que essa história de repelir as pessoas está por fora, entende? Nós somos amigáveis, compreendes? Nunca iríamos repelir um ser inferior só porque ele meteu seu nariz em nosso campo de força...

Nesse ponto, Joshua assumiu uma expressão tão insana que seu rosto teria servido muito bem como mascara de Halloween.

- Inferior? Sim! Eu sou inferior mesmo, e eu estou cansado dessa história de ser inferior aos profetas. Sabe, estou maluco por causa disso, ainda mais que, porra, cheirei um bocado de cocaína hoje e decidi, decidi por um fim com tudo isso de uma vez por todas, agora mesmo!

- Você quer dizer que vai se matar? Agora mesmo? Calma, cara, não se mate agora. Vai ficar sujo para nós. Espera a gente sair do bar!

- Calma, calma, vocês profetas só sabem dizer calma! Estou de saco cheio! Estou de saco cheio deste mundo!

Pensei: aí está uma ótima chance para testar algumas palavras anti-suicídio.

- Calma, irmão, não exagera, desgraçado. Sabe como que é, não lute contra o ritmo da vida, flua com ela - coisas do tipo.

- Flua com ela! Estou cansado desse papo de flua com ela, cara - e tirou uma pistola automática do bolso, apontando-a para sua cabeça. Ninguém viu nada - aliás, nesse ponto não havia mais ninguém no bar exceto um casal de turistas japoneses moderninhos que deve ter pensado que aquela cena era muito comum em Nova York e o negocio era, como bom modernos, ignorar.

- Espera aí, cara, que mal-educado! Vai se matar assim, sem mais nem menos, vai nos deixar na roubada... pelo menos paga a conta antes, cara! Joshua então apontou a arma para minha cabeça e disparou. Não deu nem tempo de passar um filme cerebral de toda minha vida, aquele que passa na cabeça de todos que estão para morrer, pelo menos em filme. Antes disso, a água morna que bem poderia ser mijo atingiu minha testa.

- Ha ha ha ha! Adeus, profetas, cuidem-se, ha ha há - Joshua jogou uma nota de cem dólares na nossa mesa, guardou a pistola de água no bolso e se mandou, rindo sem parar.

Pagamos a conta de vinte dólares com a nota do sujeito e fomos farrear com o resto da grana em outros cantos. Afinal, já era sábado 14.

Cassiano Fagundes foi para Nova York depois de perceber que a única saída para quem faz rock no Brasil é o aeroporto. Na Terra do Tio Sam, está quase conseguindo um contrato para lançar (lá, é claro) o primeiro álbum de sua banda, o Magog.

Textos das anta parte 3.

16.AGO.1999

RESENHAS
GONG - Show de 30 anos
Knitting Factory (Nova York)
Junho de 1999 Por Cassiano Fagundes

Como Daevid Allen disse durante seu show em um momento circense, ele é o padrinho do hippie. Esse australiano magricela fez parte da história da Swinging London quando tocava no The Soft Machine (nome que diz respeito a William Burroughs, que foi amigo e protetor de Allen, por assim dizer).

Problemas com a imigração inglesa o fizeram aterrissar na França, onde formou o Gong ao lado da cantora espacial Gilli Smyth, o excelente flautista e saxofonista Didier Malhebe e outros figuras que apareceram posteriormente, como Steve Hillage. Aqui a virtuosidade serve ao caos e por esse e outros motivos a criação de Allen não tem paralelos, a não ser que se consiga imaginar Syd Barret fazendo dueto com Charlie Parker sob influência de Adrenochrome. Cheque os 5 álbuns clássicos do combo.

A banda levou o Bebop ao aburdo, desfragmentou o rock em estilo livre, pretendeu o transe através de mandalas sonoras em constante mutação e foi incompreendida por anos até a geração Acid House aparecer. A música eletrônica, os New Age Travellers europeus e toda cena rave devem muito à catarse musical da banda, principalmente da fase do álbum "You" (quando Hillage assumiu os comandos), que fecha uma trilogia apresentando os fundamentos daquilo que seria um dia chamado de Trance. O aniversário do Gong chega em hora certa, quando de Blur ao Sonic Youth, de Beck à Chemical Brothers, o mundo de Allen invade os ouvidos dos chamados formadores de opinião e queridos da mídia alternativa (se é que isso realmente existe) e de massa (se é que isso pode realmente ter acontecido).

A trilogia "Radio Gnome Invisible" diz respeito à mitologia do Planeta Gong, um lugar distante regido pelos valores anarco-místicos do grupo, e grande parte do repertório daquela noite festiva se concentrou nesse período compreendido entre 72 e não se sabe que data estelar.
Allen entra no palco usando um chapéu de bruxo sobre seus cabelos brancos e meio loiros, com uma capa de lantejoula, uma camiseta e saiote Tye Dye e calças de Robin Hood. Aproxima-se do microfone e aponta para alguém na plateía:

"Os seus cabelos iluminados nessa cor parecem um gramado luxuriante por onde eu poderia rolar e rolar, venha, venha dançar comigo!". Ele empunha sua guitarra tocada com um pequeno arco mole de borracha e destila seus barulhos espaciais enquanto o grupo toca um jazz mercuriano marcado pela bateria surpreendentemente dançável ( pelo menos durante algumas passagens) de "Radio Gnome Invisible". O druida lança feitiços com as mãos e faz seus dedos dançarem no ritmo da flauta de Malhebe durante "Zero the Hero and The Witch’s Spell", que sacode em torno de Gilli que mia como gata no cio ( e vestida como tal, sustentada por uma trilha sonora de cabaret psicodélico) em seu microfone conectado na câmara de Eco quando tocam a maravilhosa "Witch’s Song, I Am your Pussy".

Em algum momento um som vai sendo construído pelo guitarrista que exibe seu experimento com as mãos babadas. Ele as molha no próprio suor e saliva e a esfrega na guitarra, criando um som melhor descrito como "morcegos fazendo amor no fundo de uma caverna". Scratches orgânicos.

Didier faz borboletas voarem com a flauta transversa, um prato marca o tempo, o baixo anda sobre papel de arroz. É quando Allen reaparece no palco depois de sumir misteriosamente. Vestido de bule de chá, guia a platéia através da épica "Flying Teapot", enquanto uma doida garota baixa e gordinha com seus óculos fundo-de-garrafa vestida como uma sufi dança ao seu lado. "Pot Head Pixies" é acompanhada pela platéia visivelmente transportada Paragong por Zero o herói. Allen em seguida declama poemas num ping pong com Didier, faz piadas que só um monge zen budista entenderia não entendendo e completa seus Koans quando quer levar o público ao transe em "You". A banda fornece uma base que vai se alterando em miríades de mais ou menos 6 ou 7 minutos interconectadas entre si e Allen aponta para si mesmo e diz "I", depois para alguém do público e "You", até apontar uma por uma para todas as pessoas da Factory, e terminar com um "Us" . Quando você percebe que todos os presentes batem palmas em sincronia a pedido da banda, algo extremamente raro em Nova Iorque, vê que a música está sendo vislumbrada em níveis acima do usual, e a missão de Daevid foi completa. No final, cantamos todos juntos parabéns enquanto os músicos olham para as velas que vão apagar do bolo segurado por Gilli. Definitivamente, um show alto astral, e como diz um locutor da rádio rock 104.3 NYC, " It’s Hippie bullshit, but there’s nothing wrong about It". Obrigado.

Textos das anta parte 2.

17.AGO.1999

RESENHAS
FLAMING LIPS
The Soft Bulletin (Warner)por Cassiano Fagundes
Robert O’Connor, do semanário New York Press, sugere que todos nós precisamos às vezes de amigos imaginários, e que no caso ele poderia ser o Flaming Lips. Porque a imprensa americana trata Wayne Coyne e sua banda como o primo mais novo que ficou louco de ácido e nunca mais voltou, suas armações são sempre vistas sob a lente da compaixão (condescência). "Soft Bulletin" deve reafirmar a imagem de um trio de lunáticos, mas também pode dar a idéia de que sua piada esquisita é necessária para o bem-estar da música no momento pasteurizado pelo qual passamos.

Piada para quem não gosta de ficção científica. Numa canção logo no começo do CD, um órgão meio John Paul Jones abre alas para Coyne (Race For the Prize): "Two Scientists are racing for the good of all mankind/both of them side by side, so determined/ Locked In heated battle for the cure that is the prize/It’s so dangerous, but they’re determined..." (Dois cientistas estão disputando pelo bem de toda a humanidade/os dois lado-a-lado, tão determinados/ Envolvidos em batalha brava pela cura que é o prêmio/ é tão perigoso, mas eles estão determinados"; ou para quem não acha genuína a tentativa de explicar o começo dos tempos no encarte (lê-se que "What Is The Light" é sobre a hipótese não testada de que a mesma reação química em nossos cérebros que nos faz sentir amor causou o Big Bang que deu origem ao universo em expansão).

A co-produção impecável de Dave Fridmann (ex-Mercury Rev, a banda irmã dos Lips) e uma mixagem que distanciou os instrumentos ao máximo uns dos outros a fim de realçar a forma (e efeitos) de cada som deram ao disco uma delicadeza sombria que por vezes causa estranheza quando se tenta combinar as imagens sugeridas pelas palavras à música. A tensão causada pode perturbar ou ser até difícil de engolir para não-iniciados, porém quando se descobre que "Soft Bulletin" é do tipo que funciona como um álbum e deve ser escutado do começo ao fim para se ter prazer, há uma grande possibilidade de você achar que está diante de um dos melhores sons dos últimos 12 anos. Já se você não entende inglês e está acostumado a se contentar com a melodia dos vocais, deve desconsiderar todos as convenções de como um bom vocalista deve ser. Do contrário, há o risco de implicar com a voz de Coyne.

Sinto no ar de Soft Bulletin pretensão não levada à sério. E uma pegada claramente Led Zeppelin em alguns momentos que contrabalançam a melancolia festiva e por vezes épica dos 14 números. Não há nada de novo e revolucionário aqui. Só a certeza de que nunca houve nada tão novo e revolucionário.

20 anos atrás, se alguém houvesse tentado prever como seria o disco do ano de 1999, o resultado não teria sido muito diferente deste que está tocando no meu som nesse exato segundo.

Textos das anta parte 1.

Hoje começo a postar alguns textos antigos, como essa série que escrevi para o site de meus amigos Alexandre Mathias e Abonico no final do século passado. Era o 1999, que reunia escritos sobre música, cultura e outros temas. Como correspondente internacional, escrevia a coluna A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO NORTE-AMERICANO direto de Nova Iorque. Aqueles eram tempos especiais de uma Nova Iorque pré-11 de setembro que não existe mais. Taí:

COM A LINGUA NA BOCA QUENTE DO ROCK EM NYC
Um dia desses eu estava trabalhando no Lobby da Life, distribuindo panfletos e desejando boa noite para glam-rockers, punks e outros freaks. Já desejei boa noite, por exemplo, para o Dee Dee Ramone, Billy Duffy, Naomi Campbell, Joe Pesci e outras celebridades - esse bico de distribuidor de panfletos poderia ser muito proveitoso se eu tivesse uma camera fotográfica na mão, mas optei há muito tempo por ser um cara legal.
Este é o lugar certo para se estar na cidade se você quer ver as entrelinhas do rock com os próprios olhos. Nas noites de quarta-feira, Jayne County, a travesti que deu conselhos fashion para o David Bowie e co-inventora do look Ziggy Stardust, é o DJ da casa. Já é tradição nova-iorquina a associação de travestis e bichas em geral com musica pauleira: ver no bar um motoqueiro malvado ensaiando passos de swing com uma boneca sem tensão de qualquer tipo no ar ilustra bem o fato. Aqui New York Dolls se criaram, e por conseqüência, toda uma leva de caras que achavam legal se enfeitar como poodles de madames da Park Avenue e dizerem que eram bissexuais.
Por sinal, minha companheira de trabalho naquela noite era Champagne, um travesti que veio do Wyoming alguns anos atras para tentar a sorte com sua banda tipo Stooges. Eu havia chegado atrasado e ainda não sabia quem iria tocar.
- Você viu quem entrou há 2 minutos ou perdeu a visão?
Ela estava se referindo a Keith Richards, em pessoa. O sujeito havia passado pelas minhas costas sem que eu percebesse. Aquela era uma noite especial. As Ronettes, aquelas que cantavam "...be my little baby..." estavam promovendo sua festa anual na Life, que traz
todo ano pelo menos uma carta na manga. Dessa vez eram duas. Não pude assistir aos shows inteiros porque tinha que ficar naquela de ser simpático com bêbado safado. De qualquer maneira, ver Keith Richards ao lado das Ronettes, com participação especial de Joey Ramone valeu os poucos minutos que fiquei na sala de shows.
Depois da apresentação, voltei ao meu posto, extasiado. Uns 15 minutos depois, dois seguranças mal-encarados abriram passagem no meio de toda aquela gente, eu e Champagne apenas, para Keith passar. A um metro e meio de distancia do homem, desejei boa noite e ele retribuiu com um sinal positivo. Aquele tampinha.
Algumas horas depois, era a vez de Joey Ramone, sem seguranças, com sua mulher e um amigo. Ele havia deixado seu casaco no guarda-volumes - por isso, enquanto sua mulher foi buscá-lo tive a oportunidade de trocar algumas palavras com o figura. Joey estava meio torto (bem, ele sempre foi), meio esquisito (idem) e parece que ficou com seqüelas depois de problemas de saúde. Mas continua o mesmo cara legal que você sempre imaginou que era.
Terminei a noite bebendo cerveja irlandesa ao som de New York Dolls, Amboy Dukes e de outros pedidos solicitados a Jayne, enquanto um cara chamado Grath usando vestido de garota Deadhead e barba de Jerry Garcia me explicava porque sua vestimenta não tinha nada ver com viadagem e sim com o fato de ser um monge da seita Ishtar.
Não há lugar mais rock do que esse no mundo.
NEW YORK CITY - DIGITAL DELAY E MIJO CONGELADO.
"Olhe meu filho, com todos esses anos nas minhas costas, se tem uma coisa que eu entendo é de tendências"
Esse é Doctor Minnesota, um senhor de 72 anos que por 30 deles consertou amplificadores e pedais de efeitos para uma cambada de músicos, em uma oficina do Harlem. Aposentado e quase totalmente cego, Minnesota hoje passa boa parte do seu tempo tocando uma Gibson Les Paul 72 coberta de papel laminado em estações de metro. O seu repertório é único. O ultimo numero que entrou na semana passada foi um das Spice Girls. Ele ainda não sabe se vai tocá-la antes ou depois do seu set de Muddy Waters ou se a coloca no meio de "Superfly", de Curtis Mayfield.
- ...e eu te digo uma coisa: a tendência agora vai ser Delay.
- Delay?
- Digital Delay, eco, repetição, entende? Digital Delay na voz, na guitarra, na bateria, em tudo. Digital Delay na Drum Machine. Jungle com saturação de Delay. Sacou?
Dois dias depois eu estou no Cyclone Room do Coney Island High, um porão tradicional nova-iorquino, em busca de alguma pista boa que me levasse a algo efervescente, o que vinha fazendo ha meses sem sucesso, e veja so o que acontece dessa vez, e eu juro. malandros, isso não tem nada a ver com o numero de Guiness que eu tomei com minha namorada durante os shows: Delay, muito Delay.
Perdidas no meio das seis bandas da noite, duas pérolas. A primeira, Moneyshot, é liderada por aquele tipo de cara que fede como popstar, um magrão coberto de lantejoula com um vozeirao rasgador-de-coracoes-adolescentes e uma atitude cabaret/MC5, Darwin o seu nome, uma criatura um tanto hermafrodita, eu diria. A baterista, uma garota com braços de garoto e sorriso de pugilista, certeira. Um baixista competente e um guitarrista depravado que estuprava sua guitarra com muito...muito...Delay...Digital Delay! É como se o The Edge do U2 resolvesse montar uma banda com o Jarvis Cocker, do Pulp, e a Biba, do De Falla.
Moneyshot, teria me esquecido deles se não houvesse comprado o seu CD, porque a banda que veio depois, Paint, meu Deus! o que é isso? Quatro caras vestidos com macacões brancos da Nasa tomam o palco e eu sinto a sensação de que estou presenciando um momento histórico, como se os homens da lua pisassem na terra pela primeira vez para fincarem sua bandeira, que por acaso é a mesma que a expedição da Apollo 11 fincou em solo lunar, so que invertida. Neil Armstrong do mundo bizarro empunha um violão plugado e embebido em éter, feedback e...Digital Delay! E o guitarrista, o astronauta cubano que deixaria os caras do Spacemen 3 com inveja, fazia algo muito estranho jorrar dos alto-falantes, inacreditável o que a atitude certa aliada a pedaleira certa pode fazer. Paint é indescritível, pode-se traçar um feeling nova-iorquino-CBGB inconfundivel, a originalidade do Velvet Underground em nova roupagem, mas o som é definitivamente britânico. Decididamente, esses caras devem ter todos os discos do Spiritualized.
- Achou melhor do que o Ride? - foi o que o vocalista me perguntou após o set.
Se depender do Paint, 1999 vai ser mais psicodélico do que 69. Como previu Timothy Leary. Ha.
A cena rave nova-iorquina está há anos-luz da britânica. É bem pior. Aqui tudo se resume em negócio, puro negócio. Grandes clubes faturam 30 mil dólares em uma noite. Os seguranças são toscos. O clima lá dentro, apesar da aparente liberdade sexual e a vista-grossa da gerência em relação as drogas, está mais para azaração colegial. Na segunda-feira, metade do publico vai para o curso de finanças sonhando com a sua fatia de Wall Street. Salvam-se as festas promovidas por pools de DJs dos dois lados do atlântico, em lugares menores e sem divulgação, mas para cair numa dessas tem-se que estar ligadíssimo. Ou é melhor deixar de lado essa historia de vida noturna e acordar antes do sol se por, o que acontece tão cedo no inverno que é muito fácil ficar dias sem ver o fulano.
Para quem quer dar um tempo dos clubes ou, como eu, simplesmente ainda acredita no rock’n’roll, é importante estar atento para não descobrir na ultima hora que sua banda predileta já está no palco do outro lado da cidade. Se isso acontecer, vale a pena ir nos porões para tentar a sorte. Algumas festas mensais são notórias plataformas de lançamento de coisa legal, como a Pop Art Experimental Party. A quarta-feira rock da Life é outro esquema. Travestis balançam a cabeleira ao som dos Stooges e outros sons, pilotados pela DJ Jayne County, travesti lendário do underground nova-iorquino que já foi estrela de Andy Warhol. A Life tem trazido a tona bandas submergidas desde o apogeu da new wave, como The Dickies e The Voivods, além de promover festas onde Keith Richards divide o palco com as Ronettes enquanto Joey Ramone aplaude, ao lado de Donovan Leitch, que mantém o espirito cool de seu pai nas sobrancelhas. New York City vibrando a 300 quilômetros por segundo, e eu ainda fico nessa de prestar a atenção no meu mijo, que congela todas as noites no asfalto gelado depois de uma noitada braba.

2007/11/19

A Cadela Caiçara




No verão de 2007, a chuva encharcou a Ilha das Peças e frustrou planos de visitantes, pescadores de ocasião e observadores de aves. Lu e eu contávamos com uma simples mas confortável casa de praia a 30 passos do mar, com pouquíssimas goteiras e alguns bons livros, e mesmo quando a tempestade era brava, eu fazia questão de dar um mergulho revigorante no mar. Passamos algumas semanas trancafiados em casa enquanto a água jorrava dos céus de maneira nunca monótona e uniforme: sempre vinham rajadas de vento inesperadas que faziam as portas e janelas rangerem e a água entrar pelas frestas. Todo aquele tempo dentro de casa com alguma informação escrita e também contada pelos amigos que vinham do nada para tomar um trago me fizeram pensar bastante sobre o parque nacional em nossa volta, belo e descuidado, onde, segundo alguns nativos, ainda rondavam grandes gatos selvagens e onças.

Uma das visitas mais freqüentes era Gentil, nosso vizinho. Nascido na ilha há mais de 50 anos, sua pele curtida pela água salgada e sol eram a própria história da ilha. Tinha o corpo levemente recurvado pelas lidas do mar e as puxadas de rede, cabelos muito negros que se revelavam em fios fugindo do boné encardido invariavelmente metido na cabeça e traços finos de um descendente da colônia anarquista suíça que se instalara na região ao final do século 19. Sua porção indígena era forte, e muitas vezes Gentil se parecia mesmo com um pescador mourisco ou um cigano. Tinha um senso de humor especial que o fazia transformar tudo numa grande piada. Eu era uma de suas vítimas prediletas. Quando me via roçando o quintal ou cavando buracos para esgotar a fossa que naquela chuva toda andava sempre cheia, se aproximava para se divertir com o jeito que eu segurava a enxada ou fazia um trabalho simples parecer muito mais cansativo e complicado. Seu patoá era difícil de entender, ainda mais porque Gentil gostava de falar sozinho, então você nunca sabia se ele estava te contando algo ou pensando alto. Alguns acham que ele fala com a alma de sua esposa, tese que cabe muito bem nessa parte da ilha e que foi corroborada por um amigo que jura ter visto o fantasma de uma mulher percorrendo nossos terrenos antes de se deitar no chão e rolar até o mar como um tronco pesado.

Numa noite daquelas, Gentil apareceu para conversar. Não bebia álcool de nenhum tipo, por isso ficou tomando chá gelado e fumando cigarros paraguaios enquanto me observava engolindo doses de Grogue. Eu queria saber sobre as onças. Ele contou que sim, elas estavam por lá, ao menos quando era criança estiveram. Contou que seu pai fora um grande caçador, talvez o melhor de toda a ilha. Mas melhor que ele era a a cadela que salvara pai e filho das bestas numa de suas incursões pelo interior da ilha em busca de palmito e carne de caça, quando isso ainda era permitido.

Ela era a única fêmea de uma pequena ninhada. Gentil nunca tinha visto um cachorro tão pequeno. Seus irmãos certamente se tornariam cães de caça pelo porte de vira-latas encorpados, mas a cadela não parecia ter um futuro naquela casa. Seu pai preferiu elimina-la. Dizem que esse velho caçador era muito alto, grande e impiedoso, sem um fio de cabelo na cabeça, olhos vertiginosos, então posso vê-lo segurando a cadela pela carne do pescoço com a mão ossuda e se perguntando se aquilo era mesmo um cão. Ele instruiu Gentil a levá-la quando fosse pescar de bateira com o irmão mais velho e a jogasse no mar aberto, em frente à praia deserta da Ilha das Peças. Meu vizinho tinha 11 anos e nunca esqueceu do olhar desesperado da cadela tentando voltar para o barco que se distanciava, a pelo menos 15 minutos de motor da praia mais próxima.

Dois dias depois, a pequena cadela apareceu na vila. Estava exausta e faminta, mas provara seu valor ao nadar até a praia e depois andar por bons cinco quilômetros até a vila. Era praticamente recém nascida, e sua sobrevivência foi vista como um milagre, um presente dos céus. Gentil a chamou de Lilica, em homenagem a uma tia de quem gostava.

A cadela cresceria pouco em estatura, mas bastante em coragem e perseverança. Perseguia a caça com ferocidade e catava os animais abatidos com rapidez. E então veio a citada tarde das onças, quando o velho e seu filho ficaram à mercê de duas onças que foram os conduzindo para fora da picada. Não conseguiam vê-las, só ouvir seus rugidos & movimentos. Os outros cães ou fugiram ou, aterrorizados, se perderam. Lilica ficou.

Quando tentavam mudar de rumo ou pegavam a trilha que levava à praia, uma das onças passava perto, bloqueando a passagem. Tentavam acertá-la, mas as feras eram mais rápidas do que seus gatilhos. Foi assim por horas. Quando estavam bem cansados e praticamente sem munição, viram um vulto avançando pela mata em sua direção. Quando estava muito perto, Lilica correu contra o grande gato e começou a latir de um jeito que assustou até seus donos. A onça recuou. Conseguiram retomar a trilha, mas a outra também tentou interceptá-los. Lilica correu em sua direção e a fez bater em retirada.

A cadela ganhou status de membro da família e podia dormir dentro de casa. Sua companhia deixava todos com uma sensação boa de segurança, como a mãe da família, que morrera e parecia ter voltado para casa.

Lilica foi vitimada por uma doença que deixou suas patas traseiras paralisadas, mas deixou descendentes. Um deles, Rapidinho, foi quem anos mais tarde trouxe os restos de um dedo humano para casa.

Essa história Gentil preferiu deixar para outra noite. E eu deixo para outro post.


2007/10/30

No dia em que a Torre caiu ou Pisa sabor Caiçara

Pisa sabor caiçara: e a torre das Peças caiu.
Um velho com um grande chapéu na cabeça e camisolão negro atravessa a praia espremida pela mata atlântica, meio cambaleante. Ele sobe ligeiro no pequeno sambaqui e você quase podia escutar seus pés quebrando os ossos rotos de gente morta há mais de dois mil anos. Mas não ouviu, porque esse velho era especial. Seus pés praticamente não tocavam o chão, ou não o tocavam mesmo. Sua imagem sob o sol tórrido do verão tremia na vista, e os três pescadores que puxavam a rede cheia de camarões tentaram reconhecê-lo. Não era ninguém da vila. Dava para ver uma barba branca rala e um colarinho de padre, mas podia ser o efeito do calor. Ficaram assustados, porque o velho apontou na sua direção, e depois desenhou no ar o sinal da cruz com o dedo. Então, desceu o sambaqui pelo outro lado, e desapareceu entre as palmeiras. O primeiro pescador não teve dúvidas: assombração.
Num domingo como àquele, pelo relatado por Renato na varanda de minha casa, eu aportava meu caiaque na praia da Coroa. Uma remada de trinta minutos do trapiche da vila da Ilha das Peças me levara até lá, o esforço extra por conta da maré ligeiramente contra. Avistei o sambaqui de longe, mas a idéia era deixá-lo para outro dia. Tirei a água que entrava pela tampa frouxa do tanque e fazia minha pequena embarcação ficar muito pesada. Tomei alguns goles do suco de caju que tinha comigo, e voltei a remar, dessa vez em direção ao meio da baía das Laranjeiras, para depois rumar rio adentro.
Quarenta ou cinquenta anos antes, os pescadores teriam feito o mesmo. Mas sua canoa ficou presa num redemoinho nunca antes visto naquelas partes, e por algum motivo, virou. Os homens perderam toda sua pesca, mas conseguiram desvirá-la e voltar à vila com algum esforço.
Não pensei nessa estória naquela tarde quente de fevereiro. Queria ter uma vista panorâmica da ilha, e rumei sudeste, distanciando-me cada vez mais da terra firme. Quando me dei conta, estava longe demais. E ao invés de um redemoinho, fui pego pelo vento, que começou a soprar nordeste, levando a casquinha de noz que é meu caiaque mais um tanto para o meio da baía, apesar de meus esforços para manter o rumo. Começei a remar com força, notando em poucos minutos que entrara numa corrente que acompanhava o vento, cada vez mais forte.
Grande roubada: eu entrara numa zona de maré vazante muito forte, que era potencializada por toda aquela ventania, e o mar calmo aos poucos se desfigurando. Se meu caiaque enchesse de água agora e afundasse, não conseguiria chegar aos manguezais entre a praia da Coroa e o rio das Peças nadando. Tentei conter o pânico. Mas nem sempre você tem cabeça para isso.
O primeiro pescador poderia concordar comigo, porque desde o avistamento do velho na praia da Coroa, não conseguiu tirar sua imagem da mente, nem acordado, nem dormindo, e nos sonhos a figura lhe dizia que seu fim estava próximo. Em casa à noite, sentado na varanda, via-o no canto dos olhos, escutava-o caminhar em seu quarto no escuro, fitava-o de frente quando fechava os olhos, mesmo acordado. Aquilo foi o aterrorizando, e mesmo sabendo que tudo podia não passar de uma ressaca mal curada, não conseguiu se conter e entrou em pânico. O velho aqui. O velho ali. O velho dentro da cabeça. O velho na xícara do café, de manhã. O velho! Delírios depois, sua família ainda não entendia, e enfim, o pescador pegou seu trabuco e estourou a cachola.
Meu segundo erro que pouco depois julguei ser estúpido: girei o caiaque quase 180 graus na tentativa de alcançar uma ponta de terra perto da praia da Coroa. Isso me levou ainda mais para o meio da baía. Gemi de angústia. Mais por acaso e desespero do que num momento de lucidez, remei perpendicularmente, mais ou menos em direção ao rio. Uma hora depois, eu estava a cinquenta metros do manguezal e fora do perigo. Se não tivesse cometido o erro de tentar ir contra a corrente, meu caiaque entraria na poderosa corrente de uma maré de sizígia, e caso ninguém me visse da praia, eu iria parar no alto-mar, mais cedo ou mais tarde.
O segundo pescador nunca sonhou com o velho de preto, mas pelo que me contaram, um ano depois virou sua bateira na barra do Superagüi e foi comido pelas mangonas. O terceiro ainda está vivo, e reprova qualquer habitante da ilha que queira chegar perto da Coroa. Quando voltei, quis falar com ele, mas sua casa estava fechada e concluí que tinha ido se benzer no continente, porque era o que sempre fazia. E deve ter ficado por lá, já que o vento que quase me colocara em rota de colisão com o barqueiro do infortúnio anunciava uma tempestade acompanhada de ressaca. O campo de futebol da ilha foi alagado e o mar revolto fez muitos ilhéus que visitavam Paranaguá ficarem em terra firme e longe das Peças.
No manhã seguinte, vi da janela de casa o adolescente Félix se aproximar, debaixo de uma chuva grossa. Eu tinha emprestado sua canoa, prometendo deixar meu caiaque com ele na próxima semana. Abri a porta e agradeci pelo empréstimo, ele podia levá-la.
- Deixa a canoa aí, não vô entrá no mar, eu não, o mar tá muito batido. Cê sabia que a torre caiu?
A torre da praia deserta, voltada para a ilha do Mel, serviu por muito tempo como ponto de referência aos navegantes e como baluarte de observação. Abandonada, ensaiava uma queda há anos, desde que o mar tinha começado a corroer suas fundações em seu avanço. Eu passara por ela dois dias antes de caiaque, e imaginei quando cairia. Contei a Félix o que acontecera no domingo, meu passeio na praia da Coroa e o apuro consequente.
O garoto ficou pasmo. Não era para eu ter ido lá de jeito nenhum. Além de assombrada por um jesuíta fantasma, a praia teria sido povoada por um povo malevolento que comia sua própria gente. Era um lugar amaldiçoado, e as pessoas que a visitavam traziam desgraça e loucura para si e para a vila. Segundo ele, grandes desastres haviam acontecido no povoado depois de alguma alma viva ter posto os pés nela. Todos faziam de tudo para evitá-la, passando sempre ao largo e bem longe de suas pequenas dunas com palmeiras, caso tivessem que pegar aquele caminho.
Para Félix, eu tinha sido o responsável pela tempestade que acabara com mais de uma semana raríssima de tempo bom e firme em pleno fevereiro, e consequentemente, era o culpado pela queda da torre.
Nos dias seguintes, entendi que para os habitantes da vila, a queda simbolizava o começo de novos tempos. Já tinha deixado de ser uma referência náutica de importância há décadas, mas continuava firme como um testemunho do passado. A memória dos mais velhos tinha muito poucos vestígios palpáveis que a confirmasse. E um dos últimos deles havia sumido. Posso ter sido o causador disso?
Os sambaquis da Coroa continuavam lá, com ossadas, pontas de flecha, vestígios de fogueiras e talvez outras coisas sobre as quais mal posso imaginar. Pouco se sabe sobre aquela gente ancestral, anterior aos Guaranis e Carijós. E ninguém até agora me explicou o que um fantasma jesuíta faz nesse cemitério autóctone. Por que ele quer nos afugentar de lá? O contato com o passado pagão parece ser vetado com tanta veemência por esse representante da Santa Igreja que sugeri, entre doses de cataia com meu amigo Renato e com minha querida Lu, que algo muito valioso ao conhecimento dos tempos pré-cristãos deve estar enterrado à sombra das palmeiras.
Félix acredita que a maldição já levou o que queria. Meu caiaque afundou, e o piá teve que nadar até a praia deserta, perto de onde a torre jaz espatifada na areia.
Depois, vieram noites absurdamente agradáveis e estreladas. Precisava arranjar outro caiaque.

2007/10/26

RALANDO OS OSSOS NO GRANDE SUR - A VOLTA DE CASSIM & SUA TURMA (agora em Floripa)

Janela indiscreta: sempre de olho na vizinhança em Floripa.
Aqui estou escrevendo novamente sobre aventuras & delírios subtropicais, música e algumas dicas de como se lidar com esse final dos tempos que começou na idade-média e que ainda não tem data para terminar (se tem, ainda não avisaram os visionários usuais).
Tudo começou no ano passado, em Dezembro de 2006. Depois de Puero Montt, eu e a Lu nos metemos em uma roubada em Quellón, última cidade no sul da ilha de Chiloé, no Chile meridional. Esperávamos pegar um ferry que partiria dali no dia seguinte para Puerto Chacabuco, na Carretera Austral. Quellón pareceu bem diferente da cidadezinha pesqueira pitoresca & um tanto mágica, com ventos que faziam o tempo mudar drasticamente de quinze em quinze minutos, que eu conhecera dez anos antes com meu chapa André Biscaia e sua então namorada Marina. O tempo dessa vez não mudava: estava irremediavelmente ruim, e assim ficaria. A última imagem que guardara era a do retorno de barco da ilha Laitec onde tínhamos acampado em 1996. Tínhamos entrado na baía cercados por pingüins e golfinhos num dia que se alternava entre ensolarado e nublado, e nos deparamos com um Curanto comunitário bem na rua central, pescadores gente-fina e sua gente compartilhando a orgia de carnes que é esse prato/acontecimento chileno. Em 2006, ninguém parecia gente-fina, senti cheiro de crack no ar, e o pior - a barca atrasaria e não tinha mais nem passagens, nem espaço para mais dois.
Na tarde de nossa chegada, Lu preferiu tirar uma pestana na hospedaje enquanto fui caminhar pela rua que margeia a baía de Quellón. Fiquei olhando o mar gelado, tentando descobrir o que fazer quando a grana e consequentemente a viagem acabasse. Eu tinha deixado meu emprego como programador de uma rádio de Curitiba e realmente não sabia bem o que fazer de minha vida. Lu também havia abandonado a Gazeta, de modo que pensamos seriamente em ficar pelo caminho.
Voltamos correndo para Castro onde ficamos por dois dias sem fazer grandes coisas e nos mandamos direto para Santiago do Chile para ver a ação: Pinochet havia morrido no dia anterior, e a cidade estava em convulsão por causa dos enfrentamentos quase não-pacíficos entre os pró-general (minoria) e os contra. Tiramos muitas fotos de manifestações e fizemos vídeos, para depois comprarmos salmão fresquíssimo, que a Lu preparou na cozinha de um hotel muito barato & decente a duas quadras do mercado municipal da capital.
Em seguida, atravessamos os Andes numa van até Medoza, na Argentina, onde fizemos amizades, bebemos muito vinho nas bodegas e decidimos voltar para os Andes, mais precisamente para Puente Del Inca, a 3.000 mts de altitude ou algo que o valha, bem na base do Aconcagua. Ficamos num albergue de escaladores que mereceria um relato à parte - prometo fazê-lo depois de checar os fatos com a Lu - e conhecemos o casal inglês Daniel and Lora, que se tornariam nossos grandes amigos. Juntos, fizemos uma bela caminhada na entrada do parque do Aconcágua até os 4.200 mts, e de lá, para Mendoza, e de Mendoza de ônibus (sempre nos primeiros assentos da parte superior para aproveitar a visão panorâmica dos buses argentinos) para a capital federal de Buenos Aires, minha cidade grande predileta do momento. E então nossa grana acabou, e já era Natal. E agora?
DIAS IDÍLICOS NA ILHA DAS PEÇAS
O Natal passou e o ano-novo foi com amigos na Ilha das Peças. Sem dinheiro, notei que era melhor ficar por lá mesmo, onde poderíamos pensar sobre tudo e arquitetar um novo plano para 2007 sem gastar praticamente nada. Foram dias idílicos - nós dois na casa de meus pais, às vezes visitados por nosso vizinho, o local Gentil, que sempre nos dava peixes que pescava bem na frente de casa. Lua de mel? envergonha-me pensar em termos tão mundanos, mas pode-se dizer que sim. A casa precisava de uma reforma, e nos empenhamos em limpá-la e acabar com os cupins. Passávamos as noites com a companhia de Hermann, um sapo que morava na varanda, e depois de algumas semanas, nosso amigo local Renato começou a aparecer e tivemos idéias juntos, muitas idéias, que é o que acontece quando você bebe bastante cataia com mel. Ele tinha acabado de fundar a Associação dos Condutores da Ilha das Peças, e pensamos em ajudar os adolescentes da ilha que estavam se agilizando para ganhar um troco com turistas e ajudar a cuidar dessa parte quase intocada da mata atlântica paranaense. Fizemos passeios com o Renato, subimos cachoeiras de água cristalina que despencavam das montanhas no canal entre a ilha e o continente, nadamos em águas verdadeiramente infestadas de jacarés, vimos sambaquis impressionantes, com ossadas inteiras dependuradas nas encostas, andamos todos os dias de caiaque - eu me meti em uma quase muito séria roubada numa travessia até a praia da Coroa - onde há um sambaqui e histórias de fantasmas que assustam os ilhéus - por causa do cálculo errado da maré e de uma ousadia que me custou um ataque de pânico no meio da baía; e ainda: caminhamos, lemos como nunca (Garcia Marques, David Sedaris, Ed Bueno - com quem conversei no telefone num dia em que funcionou, Nietchze e muitos relatos sociológicos sobre a cultura Caiçara, além de gibis, national geographics e o diabo) , ouvimos rádios à noite e demos graças por não termos uma TV, comemos muita batata e tomate (é barato), limpamos a fossa cheia por causa das chuvas intensas duas vezes, fiz bases sonoras eletrônicas com referência de Fandango para os rappers locais & muito mais. Dois meses se passaram, com poucas visitas à Paranaguá para ir ao banco receber empréstimos e comprar provisões, mais escassas visitas a Curitiba para tocar e fazer pequenos trambiques de tradução, e quando vimos, três meses haviam se passado.
Pensamos em desenvolver idéias rentáveis mas bem úteis para a ilha para ir ficando, e realmente nos envolvemos em algumas com o Renato, que está fazendo coisas interessantes na comunidade, resgatando a história dos caiçaras & mais. Mas o roque me chamou mais uma vez e eu voltei para Curitiba para tocar e ensaiar. Ficamos em Curitiba em Abril, e já planejávamos nossa volta para a ilha, embora um pouco perdidos & duros, quando meu amigo Zé do Bule me ligou de Florianópolis.
FLORIPA OU MELHOR, MEIEMBIPE, OU AINDA, Y-JURERÊ MIRIM.
Ele tinha boas novas: a agência de publicidade onde trabalhava estava precisando de um redator, mas não exatamente um publicitário. Entendi mais ou menos o que isso significava: poderia ganhar um troco escrevendo para viver em Floripa. Nos últimos dias de Abril, fomos com nossos amigos Dani Lange, Marcelus e Johana para o litoral norte de SP para algum surfe, e de lá peguei ônibus e caronas até Santos, de onde parti para a ilha chamada pelos carijós (ou guaranis, já que hoje se acredita que carijó é o mestiço) de Meiembipe ou Y-Jurerê Mirim. Nomes bem mais simpáticos do que Florianópolis, derivado desse sanguinário marechal. Dia 2 de Maio, eu já estava trabalhando.
Semana que vem completo 6 meses aqui. Tive a bem-aventurança de alugar uma casa situada numa vizinhança espetacular - o Canto dos Araçás - que é um morro logo acima da Lagoa da Conceição, vista panorâmica, gralhas azuis fazendo algazarra todas as manhãs, macacos, bananas, etc etc & etc. Tenho muito o que contar sobre o sítio, sua gente, as aparições que se revelam aqui e ali como fantasmas de carne & osso que só um lugar como esse consegue abrigar, as aventuras por trilhas, lagoa & mar, e a satisfação de estar muito perto de um dos maiores sambaquis do mundo. Tudo isso, e mais sobre o Bad Folks e seu bem bom disco, as músicas que compus aqui, duplas caipiras e mais que contarei logo, e aqui mesmo.

2007/05/31

Frank Zappa - mais atual do que nunca


Frank Zappa - Trouble Every Day





Frank ZappaTrouble Every Day

Well I'm about to get sick
From watchin' my TV
Been checkin' out the news
Until my eyeballs fail to see
I mean to say that every day
Is just another rotten mess
And when it's gonna change, my friend
Is anybody's guess

So I'm watchin' and I'm waitin'
Hopin' for the best
Even think I'll go to prayin'
Every time I hear 'em sayin'
That there's no way to delay
That trouble comin' every day
No way to delay
That trouble comin' every day

Wednesday I watched the riot . . .
Seen the cops out on the street
Watched 'em throwin' rocks and stuff
And chokin' in the heat
Listened to reports
About the whisky passin' 'round
Seen the smoke and fire
And the market burnin' down
Watched while everybody
On his street would take a turn
To stomp and smash and bash and crash
And slash and bust and burn

And I'm watchin' and I'm waitin'
Hopin' for the best
Even think I'll go to prayin'
Every time I hear 'em sayin'
That there's no way to delay
That trouble comin' every day
No way to delay
That trouble comin' every day

Well, you can cool it,
You can heat it . . .
'Cause, baby, I don't need it . . .
Take your TV tube and eat it
'N all that phony stuff on sports
'N all the unconfirmed reports
You know I watched that rotten box
Until my head begin to hurt
From checkin' out the way
The newsman say they get the dirt
Before the guys on channel so-and-so

And further they assert
That any show they'll interrupt
To bring you news if it comes up
They say that if the place blows up
They will be the first to tell,
Because the boys they got downtown
Are workin' hard and doin' swell,
And if anybody gets the news
Before it hits the street,
They say that no one blabs it faster
Their coverage can't be beat

And if another woman driver
Gets machine-gunned from her seat
They'll send some joker with a brownie
And you'll see it all complete

So I'm watchin' and I'm waitin'
Hopin' for the best
Even think I'll go to prayin'
Every time I hear 'em sayin'
That there's no way to delay
That trouble comin' every day
No way to delay
That trouble comin' every day

Hey, you know something people?
I'm not black
But there's a whole lots a times
I wish I could say I'm not white

Well, I seen the fires burnin'
And the local people turnin'
On the merchants and the shops
Who used to sell their brooms and mops
And every other household item
Watched the mob just turn and bite 'em
And they say it served 'em right
Because a few of them are white,
And it's the same across the nation
Black and white discrimination
Yellin' "You can't understand me!"
'N all that other jazz they hand me
In the papers and TV and
All that mass stupidity
That seems to grow more every day
Each time you hear some nitwit say
He wants to go and do you in
Because the color of your skin
Just don't appeal to him
(No matter if it's black or white)
Because he's out for blood tonight

You know we got to sit around at home
And watch this thing begin
But I bet there won't be many live
To see it really end
'Cause the fire in the street
Ain't like the fire in the heart
And in the eyes of all these people
Don't you know that this could start
On any street in any town
In any state if any clown
Decides that now's the time to fight
For some ideal he thinks is right
And if a million more agree
There ain't no Great Society
As it applies to you and me
Our country isn't free
And the law refuses to see
If all that you can ever be
Is just a lousy janitor
Unless your uncle owns a store
You know that five in every four
Just won't amount to nothin' more
Gonna watch the rats go across the floor
And make up songs about being poor

Blow your harmonica, son!