2007/11/19

A Cadela Caiçara




No verão de 2007, a chuva encharcou a Ilha das Peças e frustrou planos de visitantes, pescadores de ocasião e observadores de aves. Lu e eu contávamos com uma simples mas confortável casa de praia a 30 passos do mar, com pouquíssimas goteiras e alguns bons livros, e mesmo quando a tempestade era brava, eu fazia questão de dar um mergulho revigorante no mar. Passamos algumas semanas trancafiados em casa enquanto a água jorrava dos céus de maneira nunca monótona e uniforme: sempre vinham rajadas de vento inesperadas que faziam as portas e janelas rangerem e a água entrar pelas frestas. Todo aquele tempo dentro de casa com alguma informação escrita e também contada pelos amigos que vinham do nada para tomar um trago me fizeram pensar bastante sobre o parque nacional em nossa volta, belo e descuidado, onde, segundo alguns nativos, ainda rondavam grandes gatos selvagens e onças.

Uma das visitas mais freqüentes era Gentil, nosso vizinho. Nascido na ilha há mais de 50 anos, sua pele curtida pela água salgada e sol eram a própria história da ilha. Tinha o corpo levemente recurvado pelas lidas do mar e as puxadas de rede, cabelos muito negros que se revelavam em fios fugindo do boné encardido invariavelmente metido na cabeça e traços finos de um descendente da colônia anarquista suíça que se instalara na região ao final do século 19. Sua porção indígena era forte, e muitas vezes Gentil se parecia mesmo com um pescador mourisco ou um cigano. Tinha um senso de humor especial que o fazia transformar tudo numa grande piada. Eu era uma de suas vítimas prediletas. Quando me via roçando o quintal ou cavando buracos para esgotar a fossa que naquela chuva toda andava sempre cheia, se aproximava para se divertir com o jeito que eu segurava a enxada ou fazia um trabalho simples parecer muito mais cansativo e complicado. Seu patoá era difícil de entender, ainda mais porque Gentil gostava de falar sozinho, então você nunca sabia se ele estava te contando algo ou pensando alto. Alguns acham que ele fala com a alma de sua esposa, tese que cabe muito bem nessa parte da ilha e que foi corroborada por um amigo que jura ter visto o fantasma de uma mulher percorrendo nossos terrenos antes de se deitar no chão e rolar até o mar como um tronco pesado.

Numa noite daquelas, Gentil apareceu para conversar. Não bebia álcool de nenhum tipo, por isso ficou tomando chá gelado e fumando cigarros paraguaios enquanto me observava engolindo doses de Grogue. Eu queria saber sobre as onças. Ele contou que sim, elas estavam por lá, ao menos quando era criança estiveram. Contou que seu pai fora um grande caçador, talvez o melhor de toda a ilha. Mas melhor que ele era a a cadela que salvara pai e filho das bestas numa de suas incursões pelo interior da ilha em busca de palmito e carne de caça, quando isso ainda era permitido.

Ela era a única fêmea de uma pequena ninhada. Gentil nunca tinha visto um cachorro tão pequeno. Seus irmãos certamente se tornariam cães de caça pelo porte de vira-latas encorpados, mas a cadela não parecia ter um futuro naquela casa. Seu pai preferiu elimina-la. Dizem que esse velho caçador era muito alto, grande e impiedoso, sem um fio de cabelo na cabeça, olhos vertiginosos, então posso vê-lo segurando a cadela pela carne do pescoço com a mão ossuda e se perguntando se aquilo era mesmo um cão. Ele instruiu Gentil a levá-la quando fosse pescar de bateira com o irmão mais velho e a jogasse no mar aberto, em frente à praia deserta da Ilha das Peças. Meu vizinho tinha 11 anos e nunca esqueceu do olhar desesperado da cadela tentando voltar para o barco que se distanciava, a pelo menos 15 minutos de motor da praia mais próxima.

Dois dias depois, a pequena cadela apareceu na vila. Estava exausta e faminta, mas provara seu valor ao nadar até a praia e depois andar por bons cinco quilômetros até a vila. Era praticamente recém nascida, e sua sobrevivência foi vista como um milagre, um presente dos céus. Gentil a chamou de Lilica, em homenagem a uma tia de quem gostava.

A cadela cresceria pouco em estatura, mas bastante em coragem e perseverança. Perseguia a caça com ferocidade e catava os animais abatidos com rapidez. E então veio a citada tarde das onças, quando o velho e seu filho ficaram à mercê de duas onças que foram os conduzindo para fora da picada. Não conseguiam vê-las, só ouvir seus rugidos & movimentos. Os outros cães ou fugiram ou, aterrorizados, se perderam. Lilica ficou.

Quando tentavam mudar de rumo ou pegavam a trilha que levava à praia, uma das onças passava perto, bloqueando a passagem. Tentavam acertá-la, mas as feras eram mais rápidas do que seus gatilhos. Foi assim por horas. Quando estavam bem cansados e praticamente sem munição, viram um vulto avançando pela mata em sua direção. Quando estava muito perto, Lilica correu contra o grande gato e começou a latir de um jeito que assustou até seus donos. A onça recuou. Conseguiram retomar a trilha, mas a outra também tentou interceptá-los. Lilica correu em sua direção e a fez bater em retirada.

A cadela ganhou status de membro da família e podia dormir dentro de casa. Sua companhia deixava todos com uma sensação boa de segurança, como a mãe da família, que morrera e parecia ter voltado para casa.

Lilica foi vitimada por uma doença que deixou suas patas traseiras paralisadas, mas deixou descendentes. Um deles, Rapidinho, foi quem anos mais tarde trouxe os restos de um dedo humano para casa.

Essa história Gentil preferiu deixar para outra noite. E eu deixo para outro post.


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