2007/11/27

Textos das anta parte 4.

Sexta feira 13 na ilha onde todos nós ficamos bêbados (texto de 1999)

Manhattan: ilha onde todos nos ficamos bêbados, na língua dos índios nativos do delta do Rio Hudson.

O Mercury Rev estava em NYC para lancar seu ultimo CD, Deserter’s Songs, um trabalho bem diferente de tudo que havia feito até agora. Continuam as eventuais explosões sonoras pinkfloydescas, mas o negócio agora é um pouco mais melancólico, um pouco menos anfetamina. Um amigo meu achou o disco parecido com Enya, o desgraçado. Discordo: para mim, a única coisa que me lembra (e mesmo assim vagamente) é Syd Barrett.

Para um punhado de pessoas, o Mercury Rev é uma banda especial, que mora se não no coração, pelo menos nas terminações nervosas mais sujeitas a catástrofes sensoriais. São os porta-vozes daquilo que uns engraçadinhos da imprensa chamaram de freak rock, o rock lisérgico dos anos 90, promovido também pelo Butthole Surfers, Flaming Lips, Verve em seus primeiros momentos e sei lá mais quem.

Pela familiaridade com o grupo, estava excitado ao entrar no Bowery Ballroom. Minha companhia era o Cleverson Oliveira, artista residente em NY que está nesse momento expondo em Curitiba. Nós dois passamos alguns dias em Itapoá, Santa Catarina, com um CD do Mercury Rev, um violão e mais nada. Então, o show era um troço pessoal, tipo casamento do seu melhor amigo, que não dá para perder, nem que seja só pelos salgadinhos.

Bem, entramos cedo e havia duas bandas tocando antes do show, desinteressantes pelo que me lembro. Então sentamos no bar, que fica no andar inferior, bem debaixo do palco, e enchemos a cara sem dar uma moedinha de gorjeta para o atendente, uma heresia por aqui. O lugar estava cheio. O show do MR era o ápice do maior festival de musica alternativa do mundo: o CMJ Festival. Você pagava 370 dólares e via mais de 80 shows usando o seu crachá. Nós preferimos pagar apenas pelos shows que iríamos assistir: você sabe, a grana estava curta e tínhamos alugueis atrasados para pagar.

Uma hora depois, as bandas de abertura pararam com o barulho. - Acho que está na hora, irmão – disse, entre goles de Guiness. Mas assim que nos dirigíamos até a área dos shows, o barman começou a gritar, avisando que todos deviam sair lá de dentro antes do show para que o lugar fosse preparado. A coisa iria ser quente. Havia esse pessoal de gravadora colando cartazes do Mercury Rev e outros badulaques nas paredes: eles queriam causar boa impressão no publico. Coisa de gringo.

Bem, nós não estávamos a fim de sair dali, por isso achamos uma mesa no mezanino, que ficava a poucos metros do palco, lugar privilegiado para se assistir um show. Nos fingimos de mortos e preparamos um plano de emergência, se por acaso algum segurança passasse por ali para nos expulsar de lá de dentro. Nós estaríamos preparados.

Cinco minutos depois, assistíamos o pessoal da gravadora, nerds do rock do tipo eu-sei-fazer-de-tudo-menos-tocar, enfeitando o local enquanto enchíamos a cara com Margaritas gigantescas. Nosso plano era simples e só serviria para que não fossemos enxotados dali na porrada. A chance de testá-lo logo apareceu, na forma de um negão de 5 metros por 3. - Caras, vocês tem que sair do bar imediatamente.

- Le escargot c’est un table! - bradou Cleverson. O plano era se passar por francês que não fala inglês. Isso livraria nossas caras de bofetadas afro-americanas.

- OK senhor, eu entender, OK, esperar um pouco - disse, fazendo o papel do que sabia um pouco a língua local.

- Oui messieur, Le croissant avec la francaise de la marseille - Cleverson estava exagerando.

- Olha meu - Disse o segurança - eu não sei que goddamned língua seu amigo está falando, mas diga para ele que se vocês não saírem daqui já, vou ter que chutar vocês para fora.

- Beleza, meu, só espera eu fazer xixi no banheira, oui?

- Tudo bem, mas seu amigo espera aqui.

Quando saí do banheiro, o segurança me esperava na porta de saída.

- Seu amigo está te esperando lá fora.

De fato, Cleverson estava lá fora, mas havia mudado de cor. Vermelho meio azulado. O segurança o havia jogado para fora depois que ele soltou alguma baboseira pseudo-francesa em sua cara. Já havia uma fila de reentrada que dava a volta na quadra. Então como bons brasileiros (amiguinhos, não se acanhem com os politicamente corretos que dizem o contrário: o bom de ser brasileiro é que ainda podemos e devemos contar com o jeitinho brasileiro, nossa única arma contra o império azul-avermelhado), furamos a fila por insistência de um vizinho afro do Cleverson que estava no comecinho dela.

Os seguranças abriram a porteira e fomos os primeiros daquela grande serpente humana a apresentar os ingressos, talvez uns dos poucos com ingressos, já que americano adora crachá.

- Vocês não podem entrar com estes. Já estão usados. É claro que estavam usados. Mas como iríamos saber que havíamos entrado cedo demais e que os shows que achamos serem de abertura eram, na verdade, outro evento separado? E o pior, nem estávamos interessados naquelas outras bandas. Você pode perguntar para o barman, seu segurança, não saímos do bar nem por um segundo, porque estávamos esperando o Mercury Rev. Os trogloditas nem queriam ouvir.

Depois de insistir muito e falar com o gerente, desistimos. Um dos caras foi até que gente fina e me deu o numero do dono do bar para fazer uma reclamação e pelo menos recolher nosso dinheiro. Vamos embora, Cleverson. Cleverson?

Meu amigo estava roxo, com o olhar fixo no segurança que o havia empurrado para fora do bar.

- Eu vou pegar esse cara!

- Tá louco? Olhe o tamanho do sujeito!

- Vou cuspir na cara dele e sair correndo. Ele nunca vai me pegar, um cara desse tamanho não consegue correr nem meia quadra...

Tentei convencê-lo a esquecer tudo isso, mas naquele ponto a raiva já o havia tomado. Para piorar tudo, o Mercury Rev começou a tocar e nós podíamos ouvir a trupe perfeitamente dali, às vezes até vê-lo no palco quando alguém do staff abria uma certa porta à nossa frente. Foi como estar morrendo de fome e olhar para um prato de gostosuras na vitrine do lugar no qual você não pode entrar.
- Bem, cara, se você quer apanhar, vá em frente, mas me deixe fora disso. Tchau!

Fui embora.

Duas quadras depois aparece no meu lado esquerdo um Cleverson suado e com as pernas bambas depois de uma corrida de quarteirões. Meu amigo havia cuspido na cara do segurança e fugido como uma lebre. De fato, os seguranças eram grandes demais para conseguir agarrá-lo, ele mesmo uma espécie de atleta urbano.

Eu estava com o walkman ligado e não entendi o que Cleverson tentava me dizer. Nem queria saber, só estava preocupado com a represália que poderia vir a qualquer momento - disse diversas vezes que tinha a impressão de estarmos sendo seguidos. E não poderia pedir nossa grana de volta.

Viramos numa esquina. Foi muito rápido. Senti um boeing me agarrando pelo pescoço e jogando meus ossos contra uma grade ao lado. Pensei que era o negão. Quando tirei meu capuz de inverno vi quem era: o segurança que havia tentado nos ajudar. Ao perceber que pegara o cara errado, pediu desculpas. Não deu nem tempo dele ouvir a resposta. Nesse exato momento, Cléverson começou a arremessar garrafas quebradas do chão no brutamontes enquanto o desafiava verbalmente. O segurança, mais por bom mocismo do que por medo, pediu para que eu segurasse meu amigo louco e foi embora, depois de levar uns chutes na bunda. E olhe que o cara era gigantesco. A raiva às vezes faz com que cresçamos alguns centímetros.

Que bad trip! Sem show do Mercury Rev, agredido por um segurança por causa de meu amigo e sem grana no bolso. Para evitar mais baixo astral, fomos até um bar nas redondezas, onde uma amiga é bartender e daí poderíamos beber de graça e sossegados.

Sentamos num canto com as cabeças baixas, abrindo a boca depois de quinze minutos de silencio forçado. Culpei o cara por tudo aquilo, mas certamente a culpa maior tinha sido da gerência do Bowery Ballroom, incapaz de deixar claro o que iria acontecer com quem não tivesse crachá e entrasse muito cedo. Tudo bem. Aquela era uma sexta feira 13 e nós éramos dois jovens celtas tupiniquins supersticiosos. O negócio era esperar aquela noite passar, de preferência com a cabeça chafurdada.

Kika nos deu algumas cervejas na faixa. Secamos as garrafinhas em questão de segundos. Estávamos quase apaziguados da noite dura, até começamos a contar piadas um para o outro, as mais sem graça possível.

Falamos um pouco mal de Curitiba e coisa e tal, quando percebemos um sujeito de óculos fundo de garrafa e cara de serial killer sentado do outro lado do bar, nos encarando. Ele se dirigiu a mim e se apresentou:

- Olá, eu conheço vocês, bem, é...o meu nome é Joshua, Joshua Moses, e eu sou fã de vocês, sabe? e...

- Cuma?

- É, afinal, vocês são aqueles caras que fazem aquelas festas sensacionais, não é? Aquelas, as famosas festas, as mais quentes de NYC, não é?

Eu e meu amigo nos entreolhamos e entendemos exatamente o que fazer. Afinal, depois de uma noite como aquela, nada melhor para esquecer a porcaria do que uma boa pagada de sapo.

- Ah...claro, claro!

- Sim, vocês são os caras de Wyoming que fazem raves com ecstasy de graça, não é?

- Oh sim, de graça, com certeza, só, é isso aí, senta aí, camarada, que tal pagar umas cervejas para a gente? Podemos até dar uns autógrafos e tal...

Joshua Moses sentou e pediu as cervejas mais caras da casa. Nada mal.

- Diga lá, Joshua Moses, esse nome é de profeta, não é mesmo? - perguntei, enquanto ia preparando alguma asneira na cabeça.

- Ah, sim, de certa forma, estou lutando para me tornar um profeta...

- É mesmo é? Bem, então tenho que te dizer algo. Nós, sabe, eu e meu chapa Cleverson aqui, nós somos profetas. Nos temos três mil anos e fazemos parte de uma sociedade internacional de profetas, profetas de montanha, se é que você me entende...

O cara mudou a expressão facial de bobo-interessado para bobo-louco doentio.

- Ah, é? Profetas, é?

Levantou-se e começou a esticar o nariz em cima de mim e de meu amigo, se aproximando com seu narigão o máximo possível de nossas caras e queixos.

- Qual é a sua, cara? Nós não somos gays...

- Não, não é isso! Vocês não são profetas coisa nenhuma.

- E o que te levou a chegar a uma conclusão tão absurda ?

- Se fossem, teriam me repelido com sua energia. Mas, ao invés disso, deixaram que eu ultrapassasse o seu campo de força...

- Olhe, cara, isso não tem nada a ver. Nós, como profetas, sabemos que essa história de repelir as pessoas está por fora, entende? Nós somos amigáveis, compreendes? Nunca iríamos repelir um ser inferior só porque ele meteu seu nariz em nosso campo de força...

Nesse ponto, Joshua assumiu uma expressão tão insana que seu rosto teria servido muito bem como mascara de Halloween.

- Inferior? Sim! Eu sou inferior mesmo, e eu estou cansado dessa história de ser inferior aos profetas. Sabe, estou maluco por causa disso, ainda mais que, porra, cheirei um bocado de cocaína hoje e decidi, decidi por um fim com tudo isso de uma vez por todas, agora mesmo!

- Você quer dizer que vai se matar? Agora mesmo? Calma, cara, não se mate agora. Vai ficar sujo para nós. Espera a gente sair do bar!

- Calma, calma, vocês profetas só sabem dizer calma! Estou de saco cheio! Estou de saco cheio deste mundo!

Pensei: aí está uma ótima chance para testar algumas palavras anti-suicídio.

- Calma, irmão, não exagera, desgraçado. Sabe como que é, não lute contra o ritmo da vida, flua com ela - coisas do tipo.

- Flua com ela! Estou cansado desse papo de flua com ela, cara - e tirou uma pistola automática do bolso, apontando-a para sua cabeça. Ninguém viu nada - aliás, nesse ponto não havia mais ninguém no bar exceto um casal de turistas japoneses moderninhos que deve ter pensado que aquela cena era muito comum em Nova York e o negocio era, como bom modernos, ignorar.

- Espera aí, cara, que mal-educado! Vai se matar assim, sem mais nem menos, vai nos deixar na roubada... pelo menos paga a conta antes, cara! Joshua então apontou a arma para minha cabeça e disparou. Não deu nem tempo de passar um filme cerebral de toda minha vida, aquele que passa na cabeça de todos que estão para morrer, pelo menos em filme. Antes disso, a água morna que bem poderia ser mijo atingiu minha testa.

- Ha ha ha ha! Adeus, profetas, cuidem-se, ha ha há - Joshua jogou uma nota de cem dólares na nossa mesa, guardou a pistola de água no bolso e se mandou, rindo sem parar.

Pagamos a conta de vinte dólares com a nota do sujeito e fomos farrear com o resto da grana em outros cantos. Afinal, já era sábado 14.

Cassiano Fagundes foi para Nova York depois de perceber que a única saída para quem faz rock no Brasil é o aeroporto. Na Terra do Tio Sam, está quase conseguindo um contrato para lançar (lá, é claro) o primeiro álbum de sua banda, o Magog.

Um comentário:

Panda Lemon disse...

Hahahha! Muito bom!

Excelente texto, Cassim!

saudades...

bjos