2007/10/30

No dia em que a Torre caiu ou Pisa sabor Caiçara

Pisa sabor caiçara: e a torre das Peças caiu.
Um velho com um grande chapéu na cabeça e camisolão negro atravessa a praia espremida pela mata atlântica, meio cambaleante. Ele sobe ligeiro no pequeno sambaqui e você quase podia escutar seus pés quebrando os ossos rotos de gente morta há mais de dois mil anos. Mas não ouviu, porque esse velho era especial. Seus pés praticamente não tocavam o chão, ou não o tocavam mesmo. Sua imagem sob o sol tórrido do verão tremia na vista, e os três pescadores que puxavam a rede cheia de camarões tentaram reconhecê-lo. Não era ninguém da vila. Dava para ver uma barba branca rala e um colarinho de padre, mas podia ser o efeito do calor. Ficaram assustados, porque o velho apontou na sua direção, e depois desenhou no ar o sinal da cruz com o dedo. Então, desceu o sambaqui pelo outro lado, e desapareceu entre as palmeiras. O primeiro pescador não teve dúvidas: assombração.
Num domingo como àquele, pelo relatado por Renato na varanda de minha casa, eu aportava meu caiaque na praia da Coroa. Uma remada de trinta minutos do trapiche da vila da Ilha das Peças me levara até lá, o esforço extra por conta da maré ligeiramente contra. Avistei o sambaqui de longe, mas a idéia era deixá-lo para outro dia. Tirei a água que entrava pela tampa frouxa do tanque e fazia minha pequena embarcação ficar muito pesada. Tomei alguns goles do suco de caju que tinha comigo, e voltei a remar, dessa vez em direção ao meio da baía das Laranjeiras, para depois rumar rio adentro.
Quarenta ou cinquenta anos antes, os pescadores teriam feito o mesmo. Mas sua canoa ficou presa num redemoinho nunca antes visto naquelas partes, e por algum motivo, virou. Os homens perderam toda sua pesca, mas conseguiram desvirá-la e voltar à vila com algum esforço.
Não pensei nessa estória naquela tarde quente de fevereiro. Queria ter uma vista panorâmica da ilha, e rumei sudeste, distanciando-me cada vez mais da terra firme. Quando me dei conta, estava longe demais. E ao invés de um redemoinho, fui pego pelo vento, que começou a soprar nordeste, levando a casquinha de noz que é meu caiaque mais um tanto para o meio da baía, apesar de meus esforços para manter o rumo. Começei a remar com força, notando em poucos minutos que entrara numa corrente que acompanhava o vento, cada vez mais forte.
Grande roubada: eu entrara numa zona de maré vazante muito forte, que era potencializada por toda aquela ventania, e o mar calmo aos poucos se desfigurando. Se meu caiaque enchesse de água agora e afundasse, não conseguiria chegar aos manguezais entre a praia da Coroa e o rio das Peças nadando. Tentei conter o pânico. Mas nem sempre você tem cabeça para isso.
O primeiro pescador poderia concordar comigo, porque desde o avistamento do velho na praia da Coroa, não conseguiu tirar sua imagem da mente, nem acordado, nem dormindo, e nos sonhos a figura lhe dizia que seu fim estava próximo. Em casa à noite, sentado na varanda, via-o no canto dos olhos, escutava-o caminhar em seu quarto no escuro, fitava-o de frente quando fechava os olhos, mesmo acordado. Aquilo foi o aterrorizando, e mesmo sabendo que tudo podia não passar de uma ressaca mal curada, não conseguiu se conter e entrou em pânico. O velho aqui. O velho ali. O velho dentro da cabeça. O velho na xícara do café, de manhã. O velho! Delírios depois, sua família ainda não entendia, e enfim, o pescador pegou seu trabuco e estourou a cachola.
Meu segundo erro que pouco depois julguei ser estúpido: girei o caiaque quase 180 graus na tentativa de alcançar uma ponta de terra perto da praia da Coroa. Isso me levou ainda mais para o meio da baía. Gemi de angústia. Mais por acaso e desespero do que num momento de lucidez, remei perpendicularmente, mais ou menos em direção ao rio. Uma hora depois, eu estava a cinquenta metros do manguezal e fora do perigo. Se não tivesse cometido o erro de tentar ir contra a corrente, meu caiaque entraria na poderosa corrente de uma maré de sizígia, e caso ninguém me visse da praia, eu iria parar no alto-mar, mais cedo ou mais tarde.
O segundo pescador nunca sonhou com o velho de preto, mas pelo que me contaram, um ano depois virou sua bateira na barra do Superagüi e foi comido pelas mangonas. O terceiro ainda está vivo, e reprova qualquer habitante da ilha que queira chegar perto da Coroa. Quando voltei, quis falar com ele, mas sua casa estava fechada e concluí que tinha ido se benzer no continente, porque era o que sempre fazia. E deve ter ficado por lá, já que o vento que quase me colocara em rota de colisão com o barqueiro do infortúnio anunciava uma tempestade acompanhada de ressaca. O campo de futebol da ilha foi alagado e o mar revolto fez muitos ilhéus que visitavam Paranaguá ficarem em terra firme e longe das Peças.
No manhã seguinte, vi da janela de casa o adolescente Félix se aproximar, debaixo de uma chuva grossa. Eu tinha emprestado sua canoa, prometendo deixar meu caiaque com ele na próxima semana. Abri a porta e agradeci pelo empréstimo, ele podia levá-la.
- Deixa a canoa aí, não vô entrá no mar, eu não, o mar tá muito batido. Cê sabia que a torre caiu?
A torre da praia deserta, voltada para a ilha do Mel, serviu por muito tempo como ponto de referência aos navegantes e como baluarte de observação. Abandonada, ensaiava uma queda há anos, desde que o mar tinha começado a corroer suas fundações em seu avanço. Eu passara por ela dois dias antes de caiaque, e imaginei quando cairia. Contei a Félix o que acontecera no domingo, meu passeio na praia da Coroa e o apuro consequente.
O garoto ficou pasmo. Não era para eu ter ido lá de jeito nenhum. Além de assombrada por um jesuíta fantasma, a praia teria sido povoada por um povo malevolento que comia sua própria gente. Era um lugar amaldiçoado, e as pessoas que a visitavam traziam desgraça e loucura para si e para a vila. Segundo ele, grandes desastres haviam acontecido no povoado depois de alguma alma viva ter posto os pés nela. Todos faziam de tudo para evitá-la, passando sempre ao largo e bem longe de suas pequenas dunas com palmeiras, caso tivessem que pegar aquele caminho.
Para Félix, eu tinha sido o responsável pela tempestade que acabara com mais de uma semana raríssima de tempo bom e firme em pleno fevereiro, e consequentemente, era o culpado pela queda da torre.
Nos dias seguintes, entendi que para os habitantes da vila, a queda simbolizava o começo de novos tempos. Já tinha deixado de ser uma referência náutica de importância há décadas, mas continuava firme como um testemunho do passado. A memória dos mais velhos tinha muito poucos vestígios palpáveis que a confirmasse. E um dos últimos deles havia sumido. Posso ter sido o causador disso?
Os sambaquis da Coroa continuavam lá, com ossadas, pontas de flecha, vestígios de fogueiras e talvez outras coisas sobre as quais mal posso imaginar. Pouco se sabe sobre aquela gente ancestral, anterior aos Guaranis e Carijós. E ninguém até agora me explicou o que um fantasma jesuíta faz nesse cemitério autóctone. Por que ele quer nos afugentar de lá? O contato com o passado pagão parece ser vetado com tanta veemência por esse representante da Santa Igreja que sugeri, entre doses de cataia com meu amigo Renato e com minha querida Lu, que algo muito valioso ao conhecimento dos tempos pré-cristãos deve estar enterrado à sombra das palmeiras.
Félix acredita que a maldição já levou o que queria. Meu caiaque afundou, e o piá teve que nadar até a praia deserta, perto de onde a torre jaz espatifada na areia.
Depois, vieram noites absurdamente agradáveis e estreladas. Precisava arranjar outro caiaque.

2007/10/26

RALANDO OS OSSOS NO GRANDE SUR - A VOLTA DE CASSIM & SUA TURMA (agora em Floripa)

Janela indiscreta: sempre de olho na vizinhança em Floripa.
Aqui estou escrevendo novamente sobre aventuras & delírios subtropicais, música e algumas dicas de como se lidar com esse final dos tempos que começou na idade-média e que ainda não tem data para terminar (se tem, ainda não avisaram os visionários usuais).
Tudo começou no ano passado, em Dezembro de 2006. Depois de Puero Montt, eu e a Lu nos metemos em uma roubada em Quellón, última cidade no sul da ilha de Chiloé, no Chile meridional. Esperávamos pegar um ferry que partiria dali no dia seguinte para Puerto Chacabuco, na Carretera Austral. Quellón pareceu bem diferente da cidadezinha pesqueira pitoresca & um tanto mágica, com ventos que faziam o tempo mudar drasticamente de quinze em quinze minutos, que eu conhecera dez anos antes com meu chapa André Biscaia e sua então namorada Marina. O tempo dessa vez não mudava: estava irremediavelmente ruim, e assim ficaria. A última imagem que guardara era a do retorno de barco da ilha Laitec onde tínhamos acampado em 1996. Tínhamos entrado na baía cercados por pingüins e golfinhos num dia que se alternava entre ensolarado e nublado, e nos deparamos com um Curanto comunitário bem na rua central, pescadores gente-fina e sua gente compartilhando a orgia de carnes que é esse prato/acontecimento chileno. Em 2006, ninguém parecia gente-fina, senti cheiro de crack no ar, e o pior - a barca atrasaria e não tinha mais nem passagens, nem espaço para mais dois.
Na tarde de nossa chegada, Lu preferiu tirar uma pestana na hospedaje enquanto fui caminhar pela rua que margeia a baía de Quellón. Fiquei olhando o mar gelado, tentando descobrir o que fazer quando a grana e consequentemente a viagem acabasse. Eu tinha deixado meu emprego como programador de uma rádio de Curitiba e realmente não sabia bem o que fazer de minha vida. Lu também havia abandonado a Gazeta, de modo que pensamos seriamente em ficar pelo caminho.
Voltamos correndo para Castro onde ficamos por dois dias sem fazer grandes coisas e nos mandamos direto para Santiago do Chile para ver a ação: Pinochet havia morrido no dia anterior, e a cidade estava em convulsão por causa dos enfrentamentos quase não-pacíficos entre os pró-general (minoria) e os contra. Tiramos muitas fotos de manifestações e fizemos vídeos, para depois comprarmos salmão fresquíssimo, que a Lu preparou na cozinha de um hotel muito barato & decente a duas quadras do mercado municipal da capital.
Em seguida, atravessamos os Andes numa van até Medoza, na Argentina, onde fizemos amizades, bebemos muito vinho nas bodegas e decidimos voltar para os Andes, mais precisamente para Puente Del Inca, a 3.000 mts de altitude ou algo que o valha, bem na base do Aconcagua. Ficamos num albergue de escaladores que mereceria um relato à parte - prometo fazê-lo depois de checar os fatos com a Lu - e conhecemos o casal inglês Daniel and Lora, que se tornariam nossos grandes amigos. Juntos, fizemos uma bela caminhada na entrada do parque do Aconcágua até os 4.200 mts, e de lá, para Mendoza, e de Mendoza de ônibus (sempre nos primeiros assentos da parte superior para aproveitar a visão panorâmica dos buses argentinos) para a capital federal de Buenos Aires, minha cidade grande predileta do momento. E então nossa grana acabou, e já era Natal. E agora?
DIAS IDÍLICOS NA ILHA DAS PEÇAS
O Natal passou e o ano-novo foi com amigos na Ilha das Peças. Sem dinheiro, notei que era melhor ficar por lá mesmo, onde poderíamos pensar sobre tudo e arquitetar um novo plano para 2007 sem gastar praticamente nada. Foram dias idílicos - nós dois na casa de meus pais, às vezes visitados por nosso vizinho, o local Gentil, que sempre nos dava peixes que pescava bem na frente de casa. Lua de mel? envergonha-me pensar em termos tão mundanos, mas pode-se dizer que sim. A casa precisava de uma reforma, e nos empenhamos em limpá-la e acabar com os cupins. Passávamos as noites com a companhia de Hermann, um sapo que morava na varanda, e depois de algumas semanas, nosso amigo local Renato começou a aparecer e tivemos idéias juntos, muitas idéias, que é o que acontece quando você bebe bastante cataia com mel. Ele tinha acabado de fundar a Associação dos Condutores da Ilha das Peças, e pensamos em ajudar os adolescentes da ilha que estavam se agilizando para ganhar um troco com turistas e ajudar a cuidar dessa parte quase intocada da mata atlântica paranaense. Fizemos passeios com o Renato, subimos cachoeiras de água cristalina que despencavam das montanhas no canal entre a ilha e o continente, nadamos em águas verdadeiramente infestadas de jacarés, vimos sambaquis impressionantes, com ossadas inteiras dependuradas nas encostas, andamos todos os dias de caiaque - eu me meti em uma quase muito séria roubada numa travessia até a praia da Coroa - onde há um sambaqui e histórias de fantasmas que assustam os ilhéus - por causa do cálculo errado da maré e de uma ousadia que me custou um ataque de pânico no meio da baía; e ainda: caminhamos, lemos como nunca (Garcia Marques, David Sedaris, Ed Bueno - com quem conversei no telefone num dia em que funcionou, Nietchze e muitos relatos sociológicos sobre a cultura Caiçara, além de gibis, national geographics e o diabo) , ouvimos rádios à noite e demos graças por não termos uma TV, comemos muita batata e tomate (é barato), limpamos a fossa cheia por causa das chuvas intensas duas vezes, fiz bases sonoras eletrônicas com referência de Fandango para os rappers locais & muito mais. Dois meses se passaram, com poucas visitas à Paranaguá para ir ao banco receber empréstimos e comprar provisões, mais escassas visitas a Curitiba para tocar e fazer pequenos trambiques de tradução, e quando vimos, três meses haviam se passado.
Pensamos em desenvolver idéias rentáveis mas bem úteis para a ilha para ir ficando, e realmente nos envolvemos em algumas com o Renato, que está fazendo coisas interessantes na comunidade, resgatando a história dos caiçaras & mais. Mas o roque me chamou mais uma vez e eu voltei para Curitiba para tocar e ensaiar. Ficamos em Curitiba em Abril, e já planejávamos nossa volta para a ilha, embora um pouco perdidos & duros, quando meu amigo Zé do Bule me ligou de Florianópolis.
FLORIPA OU MELHOR, MEIEMBIPE, OU AINDA, Y-JURERÊ MIRIM.
Ele tinha boas novas: a agência de publicidade onde trabalhava estava precisando de um redator, mas não exatamente um publicitário. Entendi mais ou menos o que isso significava: poderia ganhar um troco escrevendo para viver em Floripa. Nos últimos dias de Abril, fomos com nossos amigos Dani Lange, Marcelus e Johana para o litoral norte de SP para algum surfe, e de lá peguei ônibus e caronas até Santos, de onde parti para a ilha chamada pelos carijós (ou guaranis, já que hoje se acredita que carijó é o mestiço) de Meiembipe ou Y-Jurerê Mirim. Nomes bem mais simpáticos do que Florianópolis, derivado desse sanguinário marechal. Dia 2 de Maio, eu já estava trabalhando.
Semana que vem completo 6 meses aqui. Tive a bem-aventurança de alugar uma casa situada numa vizinhança espetacular - o Canto dos Araçás - que é um morro logo acima da Lagoa da Conceição, vista panorâmica, gralhas azuis fazendo algazarra todas as manhãs, macacos, bananas, etc etc & etc. Tenho muito o que contar sobre o sítio, sua gente, as aparições que se revelam aqui e ali como fantasmas de carne & osso que só um lugar como esse consegue abrigar, as aventuras por trilhas, lagoa & mar, e a satisfação de estar muito perto de um dos maiores sambaquis do mundo. Tudo isso, e mais sobre o Bad Folks e seu bem bom disco, as músicas que compus aqui, duplas caipiras e mais que contarei logo, e aqui mesmo.