2009/08/16

O Ruído





Há algumas semanas, comecei a gravar ideias de canções usando uma fórmula interessante, que reduz a instrumentação ao uso de baterias & percussão - no caso, loops de baterias pré-gravadas - e vozes processadas. Consegui criar climas estranhos com várias camadas de vozes, influenciado pela trilha sonora da Dança dos Vampiros, de Roman Polanski, assinada por Krystjoff Komeda. A fórmula também me impede de usar letras que passem de uma ou duas frases, por isso as 5 canções que resultaram da experiência são uma coleção de nananas e shalalalas e Ohhhhhs. Também usei o ruído de funcionamento do computador como um som base para todas elas. Manipulei esse som com alguns plugins, mexendo em sua equalização e o comprimindo, junto com gravações de minha respiração. O efeito ficou surpreendente.

A fórmula acompanha um conjunto de sonhos e fenômenos que tem acontecido comigo e que de certa forma me inspiraram a explorar essa nova estética musical.

Tudo começou com um ruído grave e intenso, muito baixo, mas constante, que poucos aqui no Canto dos Araçás parecem ter notado nas madrugadas. A única pessoa que parece também tê-lo ouvido foi Sonya Colins, quando morava conosco. Ele se manifestou pela primeira vez há cerca de um ano.

O som não é ouvido todas as noites, e geralmente aparece quando o céu está estrelado. Bem, talvez isso seja apenas uma suposição, não há nada que possa provar isso, é apenas uma ideia interessante. O ruído sob o céu estrelado. Esse ruído grave poderia vir de um gerador, ou qualquwer outra máquina que produza algum tipo de frequência sonora, e tem uma variação leve de tom que acontece a cada dois segundos. Nas primeiras vezes me incomodou muito e eu ficava com a impressão de que me machucava o cérebro & os tímpanos. Várias vezes acordei Lu e a fiz prestar atenção, mas ela nunca ouviu nada. Cheguei a pensar que era uma alucinação, ie ainda acho que pode ser, talvez do tipo coletivo, porque Sonya confirmou que às vezes também era molestada pelo ruído.

Com o tempo, aprendi a ignorá-lo quando me convinha, e se isso não era possível, tinha que me levantar e caminhar pela casa para dissipá-lo da mente. Uma noite, vencido pela insônia, fiz um experimento e deitei relaxado, totalmente concentrado no som. Eu andara lendo algo sobre meditação transcendental, e na falta de um mantra (os mantras hoje em dia são muito caros) decidi usar o ruído. Em pouco tempo, suas variações de tom pareceram se fundir com o ritmo de minha respiração, e entrei num estado da consciência que me deixou sereno., ou que me fez acreditar que estava sereno e calmo. Pela primeira, vez, eu parara de tentar descobrir de onde vinha o barulho e porque me atordoava tanto. Então, aquilo que me soava como um tormento se tornou uma espécie de presente.

No começo desse ano, o som cessou. Perguntei a vários moradores se havia um gerador ou uma máquina nas redondezas que trabalhasse à noite, e se também ouviam o ruído grave e constante. Ninguém sabia de gerador ou tinha escutado coisa alguma. Em Maio, ele voltou a soar, e dessa vez, o efeito em mim foi diferente.

Da tranquilidade inicial, o som me guiava através de imagens desconexas que a mente produzia, de rochas, cores, rios caldalosos, charcos e do vento agitando palmeiras. Uma vez, deram lugar a um sonho intenso que provocou minha primeira e única experiência de sonambulismo. Depois de submergir num mar de imagens, emergi em minha cama, com os olhos abertos e o suor correndo pelo corpo apesar do frio da noite. Lu estava acordada e em pé ao meu lado da cama. Ela me olhava fixamente, com os olhos estalados como ovos fritos. Tentei fazê-la se deitar, já que ela é a sonâmbula da família, que levo ao leito ao menos uma vez a cada bimestre. Mas ela continuava firme a me observar, impassível. Nós dois vibrávamos ao som grave do ruído/mm que parecia mais alto, intenso e assustador.

Levantei-me e a puxei para a cama em vão, seu corpo rígido como um soldado de chumbo não saía do lugar. Caminhou calmamente até a porta e a abriu. Segui-a pelo portão de casa, e descemos descalços e com roupas de dormir a rua esburacada e iluminada pela lua crescente até o nível da lagoa, que alcançamos por uma trilha úmida. O ruído ecoava pela natureza e se misturava ao vento.

Lu colocou os pés na lagoa, lembro de ter pensado no frio que deveria estar sentindo, ela que é friorenta & decididamente não gosta de baixas temperaturas. Com os pés aparentemente secos & quentinhos (acho que vi fumaça saindo deles!), seguiu caminhando por cima das águas como um messias. Fui junto, e era uma delícia caminhar sobre elas. A sensação ainda está fresca em minha memória. Era como se andasse nas areias mornas das dunas da Joaquina logo após o pôr do sol num dia de verão. Areias bem finas e suaves.

No meio da lagoa havia uma cortina de brumas e nós a penetramos. Entre as nuvens, apareceu uma grande rocha negra do tamanho de uma casa. Ela saia das águas e arredondada, devia ter uns 5 metros de altura. Eu nunca tinha a visto ali. Estava onde os kite surfers velejam, onde não tem nenhuma pedra, ainda mais daquele tamanho.

Lu tocou a rocha com as duas mãos, e em seguida, enfiou uma delas nas águas abaixo de seus pés. De lá, tirou uma pedra pontuda do tamanho de seu palmo, protuberante como uma ponta de lança. Ela então começou a esfregá-la na rocha, à altura de seus olhos, num movimento horizontal. A cada passada da ponta de lança na pedra, o ruído grave ficava mais intenso, meus ouvidos começaram a doer e eu pedi para que parasse. Mas ela prosseguiu, até o ruído se tornar insuportavelmente intenso. Eu gritei de dor, sentindo meus miolos explodindo dentro do crânio. Apertei os olhos, que pareciam fritar nas órbitas.

Em seguida me vi na sacada de casa, sozinho. Entendi que parara ali numa crise de sonambulismo. Fui até o quarto e encontrei Lu dormindo tranquila. Eu tivera um sonho itão ntenso que minha mandíbula tinha se deslocado. Na cozinha, mastiguei um pedaço de pão para colocá-la no lugar, truque que aprendi com a prática. Funcionou. O ruído havia desaparecido por completo. Eram quatro e meia da manhã. Não consegui dormir até o sol nascer.

No dia seguinte, fiquei obcecado com a ideia de tentar reproduzir aquele som numa gravação, mas também em entender o que era aquilo. Não havia explicações plausíveis para o ruído, mas quando você cresce lendo livros de ficção científica ou esperando ter um dia experiências sobrenaturais, fica fácil acreditar que algo importante está operando a máquina e puxando as linhas da marionete.

Tentei gravar o ruído em vão, ele não tem volume o suficiente e sua frequência é baixa demais para ser registrado por equipamentos ruins, que é o que eu tenho aqui à minha disposição. O melhor que pude fazer foi tentar reproduzi-lo, e disso nasceu a ideia de criar uma estética sonora que traduzisse as sensações que ele me desperta.

Há alguns dias li que outras pessoas no mundo todo são atormentadas por sons graves intensos e que elas não são capazes de descobrir de onde vêm. Eu mesmo já desliguei a geladeira e todos os eletrodomésticos da casa sem conseguir parar o ruído. O artigo dizia que às vezes, uma máquina de lavar roupas à uma boa distância pode ser a culpada. Ou um gerador de eletricidade, ou algo do tipo. Lembro bem de uma máquina de lavar de minha avó que deixaria muitas bandas de noise com inveja.

Deve haver uma explicação para esse som, uma bem óbvia. Mas quando começa, ele parece soar na cidade, na natureza, e principalmente, dentro de mim. E eu não estou exagerando quando digo isso.

Pode até ser uma torradeira, mas isso realmente não importa. Meu foco é o que esse ruído grave me causa.

Algum tempo depois de minha crise de sonambulismo, eu simplesmente parei de prestar atenção. Havia me concentrado nas canções sendo criadas e no trabalho, e cansado à noite, embalado por duas ou mais taças de vinho vagabundo, talvez tenha o bloqueado, de alguma forma.

***

Numa manhã ensolarada, tomei a trilha para a costa da lagoa para me exercitar e principalmente aproveitar o fato de viver aqui, e caminhei por 45 minutos entre a água esverdeada e o céu azul. Parei num ponto alto no final de um promotório, afastado das casas da vila adiante para tirar fotos e acabei descobrindo um caminho até a beira da laguna. Desci por ela e a poucos metros de seu fim, na água, topei com uma rocha parecida com a de meu sonho, grudada na encosta que se despencava lá embaixo.

Eu me aproximei e achei ter visto claramente numa parte alta e de difícil acesso três inscrições que pareciam ser rupestres, horizontais e paralelas. Em meu sonho, a Lu tinha começado a fazer um dos riscos. Pasmo, tentei me aproximar, agarrando-me às pedras que se projetavam, encaixadas no colo da formação, com o risco de cair na água, dois metros abaixo. Mas um mato espesso bloqueava a passagem até a base da pequena parede.

Foi então que ouvi o som grave e intenso. Meu coração disparou. Será que o ruído era um veículo que estava me levando a outra realidade, inatingível pela maioria dos mortais? uma conexão direta com os povos que viveram nessas praias há 3.000 anos e que deixaram por aqui tantos vestígios? extraterestres? Deuses indígenas? Satã?

Um barco da associação dos moradores passou, o motor emitindo as frequências graves e intensas. E com o zoom de minha câmera, vi que as inscrições eram manchas próprias da textura da pedra.

2 comentários:

Margranz disse...

Parabéns pelo trabalho, vi a banda no Célula e fiquei impressionado, muito bom

Anônimo disse...

naisse Cassim, que loucura!

abs