2020/02/26

As estrelas de El Retamal

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Sentei em um banquinho de madeira diante da área de fogueira, delimitada por pedras irregulares em um semicírculo. Era um dos muitos locais destinados a isso, espalhados na clareira diante do Refúgio Retamal. Apesar de estarmos a horas de caminhada da cidade mais próxima, El Bolsón, na Patagônia argentina, o lugar reunia hordas de jovens do país e do vizinho Chile. O clima era de festa. Pouco antes de escurecer, vi uma garota de 19, 20 anos atravessar a clareira em direção ao bosque, até sua barraca. Recém saída do banho e com uma toalha envolta nos cabelos molhados, metida em um casaco claro de fleece de montanha dos mais caros, botas europeias de caminhada e uma saia que combinava tanto com um passeio no shopping quanto com um trekking na Patagônia, ela deixou um rastro de perfume doce e enjoativo. O cheiro logo se misturou ao de carne assada, vindo das outras fogueiras.

Ignazio, chileno de 26 anos, soprava o fogo sem entusiasmo. "Com essa madeira seca, tem que pegar fácil", pensei. Ajoelhei-me diante das lenhas meticulosamente arranjadas por ele e seus amigos em pirâmide, o que foi difícil devido à dor nas costas de minha empreitada montanhística de horas antes. Soprei com vigor umas cinco ou seis vezes e a fogueira ganhou vida. "Ah, legal! Você tem experiência!", disse meu novo amigo. Na verdade, tenho um pouco. No Sul do Brasil, com toda a umidade, a gente aprende essas coisas meio rápido. Danusa, amiga de Ignazio, observava compenetrada e quieta. Com pouco menos de um metro e sessenta, cabelos negros bem compridos e traços claramente ameríndios, ela tinha me dito pouco antes que era neta de "croatas ou ucranianos, algo assim".

Chegam três sujeitos. Um deles, com uma barba negra farta e olhar amistoso, se aproxima falando portunhol: "E aí cara, belessa? Brasssil! País múto loko! Legal cara!!! Eu morê no Salvador! Sou do Chile!". Outro chileno com tipo de galã chega com ele, sorridente com seus olhos grandes, campeira de montanha coberta de poeira patagônica e um lenço escuro amarrado no pescoço. Aperta minha mão com força. "É de Salvador? Bahia!!!". "Não, sou do Sul do Brasil, mas já morei na Bahia". O terceiro era argentino. Magro e abatido, parecia bem mais velho do que realmente era, e trazia nas mãos uma travessa com massa. "Vamos fazer pizza na fogueira! Já comeu? Alguém me ajuda com a parrilla?".

Escurece, e então, o céu cintila de um jeito que não via há anos. Órion está lá, se preparando para lançar sua flecha em um arco altamente tensionado. Em menos de um minuto, vejo um satélite artificial o cruzando. Mostro o ponto cintilante e rápido a Danusa, que logo vê e aponta para um segundo em outro quadrante. Pouco depois, o argentino vê  um terceiro. Quando olho para cima de novo, uma estrela cadente. Seria a primeira de seis. O céu patagônico é um prodígio.

Danusa vai ao banheiro. O chileno Don Juan pergunta a Ignazio se ele está apaixonado. "Não, ela é só minha amiga. Estamos viajando juntos, só isso". "Quer dizer que posso chegar nela, e tudo bem?" Ignazio fica sem jeito. "Ela faz o que quiser!".

A animação nas outras fogueiras está bem maior que na nossa. Estão, no mínimo, provendo mais calor, e os nossos vizinhos parecem bem mais bêbados que nós. Os dois chilenos que acabo de conhecer alimentam a nossa com gravetos médios enquanto Ignazio e o argentino espalham a massa em uma forma, sentados na mesa de madeira a alguns passos. Eu mato minha primeira garrafa de vinho da noite. Danusa volta e reclama do frio. Na fogueira mais próxima, jovens bem-nascidos gargalham alto enquanto a caixa JBL toca um rock argentino dos anos 80 nada mau. Nosso fogo está fraco demais. Ignazio vai até os vizinhos, pede um galho em chamas e o espeta nele, que finalmente começa a funcionar de verdade. "Querem ajuda?", pergunto. "Não, você é nosso convidado de honra. Pode abrir o outro vinho, ali?".

Abro. Parece que mais ninguém está bebendo só vinho, então, encho meu copo sem parcimônia. O argentino chega com duas pizzas cruas cheias de molho de tomate e tiras irregulares de queijo, e as coloca numa grelha, montada displicentemente em cima do fogo. As bordas da torta queimam na hora, mas ninguém reclama, ou tenta fazer alguma coisa. Sugiro diminuir o fogo um pouquinho. Espalho as brasas com um toco e volto para o meu canto. 

Os chilenos cochicham e vão até a fogueira vizinha. O argentino, escondido em um casaco camuflado de número maior que o seu e uma toca peruana colorida, senta no banco à minha frente, tentando se aquecer um pouco. Estende as mãos em cima das pizzas e suspira. Danusa pergunta o que ele estuda. "Segurança do trabalho. As empresas aqui são obrigadas a ter um técnico de segurança. Pra ver se os funcionários estão usando as botas, as luvas, essas coisas. Se não estão perdendo os dedos numa talhadeira.".

Os chilenos voltam com duas garotas. Já vira uma delas na chegada no refúgio, quando passei por sua mesa na entrada da construção e a ouvi falando inglês. Tinha notado seu forte sotaque germânico ou eslavo, e estava literalmente mamando uma garrafa de vinho, bebendo direto do gargalo. Eu chegara de uma caminhada pesada e tudo o que queria era paz para dormir cedo. A visão dela mais me fizera me perguntar se eu não tinha infelizmente caído justo num famoso "refúgio de fiesta".

Era muito raro encontrar ali alguém falando uma língua que não fosse o Espanhol. A reserva natural ainda não tinha sido descoberta pelas hordas de europeus e norte-americanos. Eu certamente era o único brasileiro em quilômetros e quilômetros quadrados. Era quase um alívio escutar alguém falando uma língua diferente. Ela me lembrava John Lennon, com seus óculos de aros redondos pendurados na ponta do nariz longo e cabelos castanhos-claros lisos, repartidos no meio. A outra garota era argentina. Visual hippie de boutique básico, cabelos curtos e sempre um cigarro enrolado entre os dedos.

"De onde você é?", Danusa pergunta a Lennon. "Inglaterra". "De que parte?". "Manchester". "Manchester?", pergunto. "Legal, tenho muitos amigos famosos em Salford!". "Ah!!! Salford!!!". Sinto um incômodo nela, que depois de ouvir essa palavra, fica de costas para nós, e começa a conversar animadamente com o chileno Don Juan, que pega minha segunda garrafa de vinho e enche o copo dela. "Não posso julga-la", penso. "Quem é que já não se passou por alguém de Manchester para se dar bem?". Nos próximos minutos, noto que ela nos evita por eu ter descoberto o seu disfarce, apesar de não lembrar ter comentado isso com Danusa ou Ignazio. 

Alguns minutos se passam e ela nos olha por cima dos ombros. "Alguém aí tem mais vinho?" Ignazio me pisca com o canto dos olhos e eu escondo com os pés uma terceira garrafa, jogada no chão, que ele trouxera do refúgio assim que sua cerveja terminou.

A argentina engatou num papo com Danusa sobre as dificuldades de ser vegana na Argentina. Ela se arrisca no português e me pergunta sobre a situação do Brasil nesse quesito. "As pessoas se viram bem lá, eu acho".   

Logo, Lennon convoca Don Juan e sua amiga para visitar as outras fogueiras e quem sabe conseguir um pouco mais de vinho. O refúgio a menos de 100 metros é uma casa de madeira grande de dois andares, com janelas de chalé no segundo andar. Suas luzes se apagam. É a deixa para o toque de recolher. Antes, sou praticamente obrigado a comer um pedaço de pizza queimada, que eles insistem em chamar de "piça". Já comi muitas bem piores que essa, mas estou sem fome.

Despeço-me da turma e vou para uma cabana em um extremo do gramado. É um quarto trapezoide pequeno, com uma cama de casal no fundo e duas outras em seus lados. A ordem aqui é dividir o leito com um desconhecido. Minha sorte é que meu desconhecido desistiu disso. As duas outras camas estão ocupadas, a da esquerda por um casal mais velho (que eu, suponho), e a da direita, por três garotas, cada uma metida em seu saco de dormir. Uma delas ronca alto. Deito no meu colchão desocupado e apago em cinco minutos. 

No meio da noite, levanto para ir ao banheiro numa casinha na borda do bosque. Olho rapidamente para o céu estrelado e, mais uma vez, dou de cara com um satélite. O ar gelado me faz voltar pulando para o aconchego de meu saco de dormir. Apago sem dificuldades, mas as estrelas continuam lá, cintilando em volta da e sobre a fogueira patagônica.

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